Crítica: A Febre do Rato, de Cláudio Assis

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LIBERDADE EM PRETO E BRANCO
Em seu filme mais lírico, Cláudio Assis flagra um Recife que está desaparecendo

Por Alexandre Figueirôa
Editor da Revista O Grito!

A poesia marginal recifense não podia ter um melhor tradutor para ser levada às telas do que o cineasta Cláudio Assis. O idealizador de filmes marcados por um olhar intestino de nossa realidade, a exemplo de Amarelo Manga e Baixio das Bestas, encontra agora em A Febre do Rato o terreno ideal para mostrar, em todas as letras, a sua inspiração de artista inquieto e questionador. Sexo, cachaça, maconha, amor, o desmantelo das ruas e o coração destemperado dos habitantes das bordas do Recife compõem a matéria prima para Assis inventar um mundo onde a margem de nossas existências deixa de ser um lugar apenas tangenciado para ocupar com intensidade e por completo o nosso campo de visão.

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O radicalismo contido em A Febre do Rato não é um exagero, é talvez a melhor e única forma de trazer para os olhos do mundo uma cultura que não se pauta nem pelo bom mocismo, nem pela assepsia dos costumes, mas uma cultura que mergulha nas entranhas da condição humana. Sem descartar de seu horizonte narrativo a ingenuidade ou a crueza da poesia feita pelos poetas marginais, o filme de Assis finca suas raízes na anarquia dos gestos, na liberdade de expressão e nas contradições existenciais e sociais de nosso cotidiano.

Para nos conduzir nesta viagem poética, suja e desordenada, emerge diante de nós Zizo, um poeta marginal que sintetiza de maneira precisa o estado de espírito de quem, de alguma forma, tenta decifrar a nossa paisagem física e humana. Interpretado de forma magistral pelo ator Irandhir Santos, Zizo está no centro de uma história que, a rigor, não tem nada de extraordinário. Como muitos poetas, ele apenas faz da poesia uma antena transmissora de indagações sobre o amor, o prazer, as injustiças e o eterno conflito entre os que existem para reprimir e aprisionar desejos e os que defendem a liberdade do espírito.

Contudo, é exatamente nesta aparente simplicidade que A Febre do Rato nos toca. O próprio Zizo e aqueles que o cercam, o amigo coveiro casado com a travesti Vanessa; os três maconheiros que vivem juntos com a mesma mulher; as velhas cachaceiras que adoram fazer sexo com o poeta num tanque d’água sob as bananeiras, no quintal da casa dele; e Eneida, uma bela jovem por quem ele se apaixona; são matrizes reveladoras deste universo periférico que compõe este Recife que não aparece na cultura oficial e é ofuscado pela exaltação das manifestações folclóricas, enaltecidas como únicas formas de expressão artística autêntica das classes populares.

O Recife de A Febre do Rato caminha literalmente pela lama do Capibaribe e abre-se para o mar, revelando o contraste esmagador ao qual estamos submetidos. Os poemas de Zizo, e as imagens que vão se desenrolando diante de nós, tiram o véu desta cidade viva, pulsante e ao mesmo tempo devassa e demente. Vemos o Recife pelos olhos do poeta e aprendemos com ele a enxergar o lirismo expresso nos seus becos e canais. Seus versos desconstroem assim tabus e estigmas impostos pelo provinciano padrão conservador da cultura pequeno-burguesa local.

A fotografia em preto e branco, apesar de provocar certa estetização, acrescenta um componente curioso na percepção do filme, dialogando com o romantismo anacrônico assumido pelo protagonista. É como se estivéssemos flagrando um Recife que está desaparecendo e que ficará apenas na memória dos que jamais trocarão fumar um baseado na beira do Capibaribe numa noite de São João, bebendo uma cachacinha, pelos arraiais cenográficos ao som de forró eletrônico no Chevrolet Hall.

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