Um pequeno grande filme
Eles Voltam desmascara as tensões que existem entre a classe média neurótica através da jornada de uma garota perdida
Se fôssemos resumir o argumento de Eles Voltam em uma frase poderíamos afirmar tratar-se de “um filme sobre o choque de realidade vivido por uma garota pequeno-burguesa”. A rigor é disto que a obra do cineasta Marcelo Lordello quer falar. Contudo, por trás desta assertiva tão direta vamos nos deparar com um delicado e sutil ensaio cinematográfico que encanta, comove e nos leva a pensar sobre esse mundo de abismos sociais que está à nossa porta e do qual muitas vezes conhecemos apenas a superfície de tensões, preconceitos e clichês, forjados por teorias sociais que não adentram na complexidade das relações humanas.
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Este é o maior mérito do filme de Lordello, ganhador do 45º Festival de Brasília e que agora chega às salas de cinema do Recife e outras cidades brasileiras. A partir de uma história simples sobre Cris, uma menina de 12 anos, deixada pelos pais por castigo na beira de uma rodovia, o diretor tece uma fábula em que desmascara o enclausuramento da classe média brasileira quase sempre fechada ao contato com os outros e assustada com tudo que habita além de seus muros vigiados por câmeras e cercas elétricas. História que se torna concreta numa produção de baixo orçamento, mas plena de criatividade e poesia.
A narrativa é toda construída sob o ponto de vista da menina. Entre certa incompreensão da situação que está enfrentando e a descoberta de um universo para ela totalmente novo, Cris vai empreendendo a jornada de retorno para casa. Lordello nos convida a compartilhar o olhar e as reações da protagonista, de modo que entremos nessa trajetória com a mesma sensação de desamparo, desconfiança e também destemor. Para sobreviver e achar o caminho de volta, ela vivencia encontros com realidades totalmente diferentes e tomará consciência de seu lugar no mundo e quão equivocada é a situação convencional de sua vida cotidiana.
Eles Voltam é um filme de sutilezas e revela a maturidade da direção, embora esse seja o primeiro longa de ficção de Lordello. O tom de fábula realista é muito bem articulado e a trama desenvolve-se num ritmo que pouco a pouco vai envolvendo o espectador, sempre instado a desconstruir seus próprios pré-julgamentos. Uma certa tensão propositadamente perpassa a história diante da inusitada jornada de Cris. Ela vai parar num assentamento do MST na Zona da Mata e depois é acolhida por uma mulher numa cidadezinha à beira mar, situações que, para a maioria das pessoas, são tidas como potencialmente perigosas para uma garota de classe média.
Os planos longos, a câmera observando de perto e longamente as andanças da menina e as pessoas que ela vai encontrando, a perfeita conjugação entre o estado interior de Cris e as imagens que a cercam vão, contudo, desfazendo a possibilidade de algo grave vir a acontecer. E Cris descobre que as pessoas de posições sociais diferentes das suas não são muito diferentes dela. Elas são solidárias, têm sonhos e dão duro para viver. E ao voltar para o lar ela não será mais a mesma. O ritual de passagem concebido por Lordello nos remete de alguma forma aos filmes iranianos protagonizados por crianças. São filmes que depositam no olhar aberto e afetivo de criaturas muito jovens a possibilidade de sociedades mais justas, mais solidárias e menos violentas. E a Cris, vivida com brilhantismo pela garota Maria Luiza Tavares, é uma aposta nessas mudanças.
ELES VOLTAM
De Marcelo Lordello
[BRA, 2014 / Vitrine Filmes]
Com Maria Luiza Tavares, Georgio Kokkosi, Elayne de Moura
Nota: 8,0