UMA FÁBULA DO ESTRANHAMENTO
Coração Apertado, da vencedora do prêmio Goncourt 2009, é thriller surreal sobre a paranoia e o medo como motores da violência na sociedade francesa
Por Paulo Floro
Editor da Revista O Grito!, no Recife
A escritora francesa, de origem senegalesa, Marie NDiaye, não está interessada em fazer uma crítica social da sociedade francesa contemporânea, como muitos podem pensar. Em seu primeiro livro lançado no Brasil, Coração Apertado, a autora, que venceu o prestigiado prêmio Goncourt pelo romance Trois Femmes Puissantes (ainda inédito por aqui) quis fazer uma fábula sobre o mal-estar em um mundo de que não se pertence. É uma literatura incômoda, que reflete bem a sensação de insegurança e hostilidade que se vive nesses tempos.
NDiaye conta uma história absurda – rechaço o termo kafkiano, usado até mesmo pelos editores – de um casal de professores franceses que se veem alvo da hostilidade de todo mundo. Alunos, pessoas nas ruas, vizinhos, todos passam a lançar olhares de julgamento, subitamente, sem que isso tenha sido motivado por algum motivo específico. Os alunos agora os temem, os colegas da escola olham enviesados, a família os culpam por todo o infortúnio, pessoas evitam encontros na rua e o marido chega mesmo a ser ferido na barriga.
E quando mais Nadia, a protagonista, tenta investigar o motivo de tanto pavor e ódio, mais eles parecem complicar um delicado equilíbrio antes que o ódio puro e simples se instaure.
» Leia um trecho de Coração Apertado
Essa trama é contada a partir de uma narrativa tensa, que a escritora parece querer nos colocar dentro da cabeça de Nadie, com suas divagações, dúvidas e momentos de desespero, mas ainda com uma distância suficiente para que não criemos uma empatia com a personagem, para que não seja possível absolvê-la. Ela de fato é culpada pelo que está passando ou tudo é mesmo fruto de uma paranóia particular e doentia. O mundo está mesmo contra eles?
Marie NDiaye é sóbria, não faz grandes sequências, não inventa grandes momentos estilísticos, à exceção de alguns momentos de humor. Sua intenção por essa escrita bastante simples é que o texto tem a fluidez de um thriller. A violência velada sofrida pelo casal e a dificuldade deles em compreender este infortúnio transmite uma atmosfera perturbadora ao leitor.
E se a razão não consegue explicar o ódio, talvez seja a percepção de como se vê o mundo que esteja mudando. A autora, mais do que fazer uma crônica sobre os injustiçados ou menos favorecidos, quis mostrar o quão é difícil, atualmente, fazer parte de algo. O ódio, possivelmente, seja fruto desse despertencimento. O inconformismo de não compreender acaba gerando violência. E isso acomete pessoas simples, como uma simples atendente de farmácia.
Filha de mãe francesa e pai senegalês, Marie tem background para tratar desses temas incômodos da sociedade contemporânea da Europa, e mais especificamente, da França. Criada na periferia de Paris, ela já escreveu dez livros e se tornou um dos nomes promissores da literatura francesa atual quando ganhou o Goncourt. Aos 17 anos, mandou um romance para avaliação da cultuada editora Minuit, e foi esperada na porta da escola onde estudava por Jérôme Lindon, editor de nomes como Samuel Beckett, Alain Robbe-Grillet e André Gide.
Por essa sua visão, Marie foi comparada ao diretor austríaco Michael Haneke. A paranoia e o medo parecido com o que Coração Apertado sugere está presente no filme Caché (2005), que ganhou a Palma de Ouro, em Cannes. Ela também não é exatamente bem quista por muitos franceses formadores de opinião. Militante política ao seu modo, ela deixou a França para morar com o marido em Berlin, o também escritor Jean-Yves Cendrey, por não concordar com a política de Nicolas Sarkozy.
Coração Apertado ganhou edição brasileira pela Cosac Naify, que colocou o livro nas livrarias em abrio. A editora já comprou os direitos do premiado Trois Femmes Puissantes.
CORAÇÃO APERTADO
Marie NDiaye
[Cosac Naify, 272 págs, R$ 49,90]width=”478″ no