Um dos aspectos mais positivos dos filmes produzidos pelo coletivo Surto & Deslumbramento é a capacidade de trazer à tona temas e olhares sobre o mundo que, em geral, são vistos com desdém pelo cinema mainstream. Ao assumirem a frangagem como ação expressiva, Chico Lacerda, Rodrigo Almeida, Fábio Ramalho e André Antônio abrem um leque de possibilidades narrativas e visuais onde, se por um lado a experimentação e o deboche dão o tom, por outro, seus trabalhos são também um lugar de desejos expostos sem frescuras, de uma criatividade que busca o apuro estético e de indagações irônicas e questionadoras capazes de provocar as mais variadas reflexões. E é isso que vamos encontrar em A Seita, o novo trabalho do grupo com direção e roteiro assinados por André Antônio.
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O projeto foi premiado pelo Funcultura na categoria curta-metragem, mas acabou se transformando em um longa. Ele é ainda o primeiro trabalho do coletivo que não foi feito apenas com recursos próprios. O fato de ter um orçamento maior e recursos técnicos mais sofisticados, no entanto, não distanciou o resultado final daquilo que o Surto & Deslumbramento assume como sua maior pinta. Ou seja, um cinema que busca se distanciar da heteronormatividade e faz dos corpos, das palavras e dos gestos do imaginário gay uma deliciosa mistura de provocação e tomada de posição onde o inusitado é regra e os excessos são sempre bem vindos.
A Seita é uma ficção científica que se passa no Recife em 2040, quando um jovem habitante de uma colônia espacial resolve voltar para a Terra. Aqui ele encontra uma cidade quase fantasma e passa a viver como um dândi, num palacete semi abandonado. Num cenário de cortinas vermelhas em que a estética kitsch e as alegorias camp andam abraçadinhas e trocando carícias, o recém-chegado passa a maior parte das horas do seu dia lendo desde livro de poesias a histórias em quadrinhos, bebendo chá em xícaras de porcelana finamente decoradas ou simplesmente contemplando o mundo pela janela. Quando sai para as ruas, fica vagando pelas ruínas da cidade onde flerta com outros rapazes que acabam indo para sua cama. E é nessas caminhadas que ele descobre a existência da seita.
Contudo, o filme de André Antônio está bem longe de ser uma ficção científica dentro do modelo estabelecido para o gênero. Ele, na verdade, brinca com essa expectativa e o futuro decadente representado no filme é composto por cenários reais do Recife contemporâneo. Uma paisagem que ganha outra dimensão quando o personagem do dândi com suas roupas excêntricas mergulha nelas. Em A Seita, André leva adiante algo que já esboçara no seu curta Canção de Outuno: a intenção de explorar a plasticidade da imagem em proveito de um refinamento estético de modo a sensibilizar o espectador mesmo que isto resulte em uma mise-en-scène anti-naturalista.
O filme, portanto, apesar de sua proposta futurista, em sua essência não trai o espírito da figura do dândi escolhida para ser o fio condutor da narrativa. E nesse sentido sua perspectiva é marcada pela frivolidade, pela contemplação e pela indolência. Os planos longos, as repetições e os silêncios presentes em A Seita nos traduzem o permanente estado de languidez vivido pelo personagem, alguém que faz do seu comportamento uma arma contra o mundo contemporâneo – representado pela colônia espacial que ele deixou – com suas exigências de ordem, produtividade e felicidade a qualquer preço.
O figurino e o cenário anacrônicos, os diálogos repletos de viadagem e o claro louvor a um comportamento indolente, podem fazer A Seita parecer um filme frívolo, mas se prestarmos bem atenção veremos que a sua volta ao passado, num futuro que existe no presente é um ato bastante político. Tem dúvidas? A seita lhe dirá porquê.