Esta entrevista foi originalmente publicada na revista Unicaphoto do Curso de Fotografia da Escola de Comunicação da Universidade Católica de Pernambuco.
Em uma época na qual as travestis só podiam sair na rua depois das seis da noite, Consuelo desfilava no Baile Municipal da capital pernambucana, participava de concursos de fantasia e virava o centro das atenções nas colunas sociais de todos os jornais do Estado. Com muita ousadia e irreverência, ela desafiou as normas do seu tempo e, claro, incomodou muita gente, tornando-se uma das travestis mais famosas do Recife nas décadas de 1980 e 1990.
É essa a trajetória revisitada em Consuella, o mais recente curta de Alexandre Figueirôa, editor-executivo da Revista O Grito!, cujo trabalho nos últimos anos tem se dedicado a investigar personagens emblemáticos da cena LGBTQIA+ do Recife do passado. A partir de depoimentos e imagens de arquivo, o novo filme do diretor reconstrói a história de uma figura que, acima de tudo, se tornou inspiração e referência para toda uma nova geração de travestis e mulheres trans.
Mas foi com Eternamente Elza (2003), um documentário despretensioso sobre o cotidiano da transformista recifense dedicada a interpretar as grandes divas brasileiras do rádio, que o diretor percebeu a urgência de trazer às telas uma memória LGBTQIA+ recifense. Desde então ele não parou mais e lançou um filme atrás do outro. Primeiro foi Kibe Lanches, em 2017, depois Piu Piu (2019), Recife, Marrocos (2022) e agora Consuella (2023). Todos revisitando personagens e lugares emblemáticos da cena queer do passado.
“Todos esses filmes resgatam a memória e atualizam esses personagens ao trazê-los para o presente”, disse o diretor na nossa entrevista, na qual detalhou ainda as dificuldades para reviver essas histórias, a importância de resgatar esses personagens e apresentá-los às gerações de agora, além de algumas das referências que permeiam o seu trabalho enquanto realizador audiovisual.
Consuellá terá exibição seguida de debate na próxima segunda (18), no Cinema da Fundação – Derby, às 19h30, com entrada gratuita.
Em Consuella, você dá continuidade a um sólido trabalho de resgate de personagens e vivências LGBTQIA+ no Recife do século passado. Na sua opinião, de que forma o audiovisual contribui para a (re)construção dessa memória coletiva?
A ideia de fazer o resgate dessas personagens LGBTQIA+ surgiu meio que por acaso quando eu fiz meu primeiro documentário com Paulo Feitosa sobre uma dessas figuras, que foi o Eternamente Elza, em 2003. Mas esse foi um filme feito para Elza e sem grandes pretensões em torno do audiovisual. Já essa ideia de documentar essas figuras surgiu em 2013, quando eu fiz a reedição do Eternamente Elza com Chico Lacerda [Cineasta e quadrinista, criador do coletivo Surto & Deslumbramento]. Foi quando eu pensei em botar o filme no YouTube, porque ele tinha ficado nesse circuito bem alternativo mesmo, sem circular em lugar nenhum. Falei com Chico, ele sugeriu fazer uma nova edição e então o filme teve exibições no Festival Mix Brasil, no For Rainbow e no Recifest que homenageou Elza. Foi quando eu percebi a importância desse tipo de documento de registro.
Só que Elza é diferente, porque ela estava viva, fez show, cantou, deu entrevista e tudo mais, então é um documento presente, digamos assim. Já quando foi o Kibe Lanches, do Barão, embora na época ele estivesse vivo, não havia registro. Foi aí que acentuou ainda mais, para mim, a necessidade de ter esse registro, porque o Kibe Lanches e as noitadas do Barão mexeram com a vida LGBTQIA+ do Recife no final dos anos 1980 e início dos anos 1990. Fez muito sucesso e era um point da noite marginal e alternativa, mas não tem foto, nem vídeo, nada. Tem um filme de Jomard Muniz de Britto, do qual eu pego um trecho, e só. Foi aí que eu percebi essa carência, o que é normal nesse mundo marginal, sobretudo em uma época que não tinha a facilidade que hoje existe com os celulares e as câmeras fotográficas.
Então, todos esses filmes resgatam a memória e atualizam esses personagens ao trazê-los para o presente. Isso é curioso porque as pessoas, que de alguma forma viveram a época, começam a recordar um tempo que elas gostavam e se identificavam, mas também serve para mostrar às novas gerações que esses personagens foram a vanguarda antes de existir todos esses movimentos de libertação LGBTQIA+ que vemos hoje em dia.
Em Piu Piu, um dos seus últimos curtas, você se vale de uma linguagem mais poética de reprodução da realidade para contar a história de um dos mais antigos transformistas do Recife. Já neste novo filme, a narrativa documental convencional é o que predomina. Você poderia comentar o porquê dessas escolhas?
Trabalhar com memória é sempre um desafio, porque você tem que resgatar histórias que muitas vezes estão esquecidas. Quando o personagem está vivo, como é o caso do Kibe Lanches e Eternamente Elza, é mais fácil porque mesmo que você não tenha imagens, você tem o depoimento das pessoas. Em Kibe Lanches, por exemplo, nós tentamos fazer uma encenação de como eram as apresentações que lá aconteciam, mas usamos pouquíssimas coisas, porque não dava para reproduzir o clima e a irreverência da época.
No caso de Piu Piu, isso foi mais grave, porque apenas a partir de uma entrevista dada por ele para Lêda Rivas no Diário de Pernambuco, foi possível reconstruir a trajetória dele. Em termos de imagem, havia grandes lacunas, porque não existia detalhes dessa época, então o que conseguimos foram algumas fotos de jornais com a impressão péssima. Mas era muito pouco. Tudo o que tínhamos era a lembrança dele contando nessa entrevista pra Leda, então nós optamos por uma reconstituição da época, mas de uma forma mais poética. Então, o personagem é quase um fantasma, digamos assim, uma espécie de espectro que caminha no Recife contemporâneo e vaga por lugares que o personagem estaria circulando nos dias de hoje como aquele trecho da Manoel Borba [perto da rua das Ninfas] e o Centro do Recife. Portanto, a opção por essa reconstituição poética era o que dava pra fazer. Usamos imagens de arquivo que não têm nada a ver com o personagem Piu Piu, mas que remetem e criam uma realidade ficcional ou uma ficção realista do que foi esse personagem que viveu nos anos 1950 e 1960 no Recife.
Já Consuella, há o diferencial das muitas imagens fotográficas e memória das pessoas porque é mais recente. Mesmo já falecida, ela é uma personagem que eu conheci. Então, assim, é uma personagem muito rica em termos de informação. Na verdade, diante da quantidade de coisas, nós poderíamos até fazer um longa-metragem, mas para isso teria que investigar mais a fundo a vida pessoal e familiar dela. Então, nós preferimos abordar o personagem público da Consuella, que foi a grande estrela, a grande vedete, a grande travesti do Recife dos anos 1980 e 1990, que ficou na memória de muitas pessoas e que tem uma representatividade muito forte. Mas, mesmo assim houveram lacunas como é o caso, por exemplo, do tempo que ela viveu em Paris, porque sabemos o que as pessoas falam, mas não há imagens.
Nesse caso, eu tive que apelar para recursos da imaginação com fragmentos que eu mesmo filmei lá na França para reconstituir essa vida dela na França. Já aqui [no Recife], são muitos os depoimentos e fotos. E essas fotografias são um elemento muito importante nessa reconstrução. Por isso, a opção por uma estrutura mais clássica com uma cronologia da vida dela. Eu tinha acesso a mais documentos e imagens. Tem até um trecho de um filme feito por Jomard Muniz de Britto, Au Revoir, Madame Bayeux, no qual Consuella aparece e é a única imagem que existe dela em movimento.
Como a formação em jornalismo costuma guiar seu olhar sobre essas histórias? Como isso influencia seu processo produtivo?
O fato de ser jornalista influencia no sentido de que eu gosto de contar histórias e gosto de ler biografias, sobretudo de personagens à margem. Personagens muito importantes como reis e rainhas não fazem muito minha cabeça, mas eu gosto de histórias de escritores, de artistas, de pintores, de cineastas, e sempre presto muita atenção em biografias bem escritas, nas quais há uma pesquisa aprofundada. Eu acho fascinante isso de reconstruir a vida de alguém através de documentos e depoimentos. Então, de alguma forma, os filmes que eu realizo acabam tendo essa pegada, porque eu vou nos jornais e pesquiso.
Em Consuella, folheamos jornais e pegamos matérias sobre o impacto que ela causava quando chegava aqui [em Recife], sobre a reação dos jornais e da cidade ao fato de uma travesti ganhar um concurso de fantasia no Baile Municipal do Recife. Então, são essas situações que eu resgato através dos depoimentos, mas sobretudo através da leitura dos jornais da época porque ela era bem querida pelos colunistas sociais. Então, foi através da pesquisa dos jornais que certas escolhas do filme foram realizadas. Os cortes e toda a edição foram feitos em função dessas informações que estavam presentes nos jornais.
Enfim, acredito que, o fato de eu fazer documentário é uma relação direta com a minha atividade jornalística e o Consuella talvez seja o mais jornalístico dos meus trabalhos. É um documentário jornalístico, diferente do Piu Piu, do Kibe Lanches e até do Eternamente Elza, que são mais lúdicos e mais poéticos.
Como cineasta e pesquisador do audiovisual, quais são as referências que você traz para sua produção?
Por eu ser pesquisador de cinema e de audiovisual, evidentemente, já assisti a muitos filmes, muitos documentários e muita ficção, assim como já li muito sobre cinema, sobre diretores e tudo. Mas, para ser sincero, eu nunca pensei muito nessa bagagem na hora de fazer os filmes. Talvez venha naturalmente por conta da intertextualidade, ou seja, eu vi tanto filme, eu vi tanto documentário, que isso, de alguma forma, já está dentro de mim. Então, quando eu vou produzir e pensar um documentário, isso já surge naturalmente desse conjunto de informações que eu adquiri no decorrer do tempo.
Mas, como os filmes são focados nas pessoas e no que elas contam da vida delas, talvez lembre um pouco o Cinema Direto e o Cinema Verdade. Eu diria que isso é mais presente no Eternamente Elza, mas menos em Kibe Lanches e no Piu-Piu, por conta justamente da necessidade de fazer uma coisa mais poética pelas lacunas de informação, de documentos e de imagens. Então pela falta de recursos para reencenação, nós acabamos pegando muito fragmento de filmes e aí tem uma coisa de bricolagem, que lembra um pouco o Super-8 de Jomard Muniz de Britto, que era um cinema mais aberto, mais livre.
Aliás, um elemento recorrente nos seus trabalhos é a incorporação de registros fotográficos e imagens de arquivo dos personagens e lugares retratados. Você acredita que o diálogo entre o cinema e a fotografia é uma importante dimensão contra o apagamento dessas histórias?
Sem as fotos, esses filmes não existiriam. Em Consuella, especialmente, que é um documentário mais jornalístico, mais clássico, porque tiveram muitas fotos e imagens. No caso dos outros, não; não têm muita foto porque não havia muitas imagens de arquivo. Então, por exemplo, no Kibe Lanche, as fotos mostradas são aleatórias: das travestis do grupo de teatro Vivencial, de gays nos anos 1980, de revistas pornô, de gravuras que remetem ao mundo árabe. Enfim, foi muito diversificado. Já Consuella não, porque está documentado com fotos de quando ela apareceu nas revistas durante os desfiles de carnavais, tem fotos de arquivo pessoal, cedidas por algumas das personagens que aparecem no filme. São fotos que estavam nas gavetas e armários das pessoas e agora não mais, porque vão ser vistas por um número grande de pessoas e vão permanecer de outra maneira, ressignificadas na medida em que estão no filme.
No caso de Piu Piu, não tínhamos foto, mas imaginamos tudo a partir do que ele conta na entrevista. Então, o material utilizado, embora não seja de fotos de Elpídio Lima, que é o personagem Piu Piu, remete ao universo dele e dos lugares por onde ele circulava. Então, por exemplo, temos muitas fotos dos cartazes do Teatro Marrocos, local onde ele trabalhou. E essas fotos são documentos importantes, sobretudo, porque o Teatro Marrocos é um teatro que não tem muito sua história contada. Então, é importante resgatar essas imagens, seja em jornais, seja em revistas ou nos arquivos pessoais, porque, mesmo quando não estão presentes no filme, inspiram o realizador e reencenam o clima da época.
Para você, o que representa colocar no mundo hoje um filme sobre uma figura como Consuelo, a travesti mais famosa do Recife, no país que mais mata pessoas trans e travestis e no estado que, tragicamente, permanece o mais perigoso para a comunidade?
Apesar dos avanços em termos de políticas públicas, de organizações e de uma parcela dos meios de comunicação, nós sabemos que ainda há muita homofobia e muita violência. Um paradoxo, porque no momento que temos avanços, ao mesmo tempo temos essa violência absurda. Então, qualquer obra que trate desse tema com respeito, tem relevância por mais simples que seja. Eu vejo muito nos festivais LGBTQIA+ ou mesmo em outros festivais, que são muitos os temas abordados e ao mesmo tempo são muitas as questões que ainda que não foram devidamente mapeadas e equacionadas. Então, qualquer obra audiovisual, por mais simples que seja, é importante que seja mostrada e que circule para além dessa bolha do circuito LGBTQIA+, ocupando também outros espaços.
Um filme como Consuella mostra a relevância de personagens como ela, que desafiaram as normas e as regras, embora haja um certo glamour. Consuella fez parte, digamos assim, daquele universo das travestis como Jane Di Castro e Rogéria, que foram para Europa e voltavam bem glamourizadas, quase cópias de grandes atrizes de cinema. Então, há uma exibição de um certo luxo. Mas, mesmo assim, elas foram muito importantes, porque as travestis, as mulheres trans e os gays eram perseguidos e elas sempre foram muito mais discriminadas, sempre sofreram muito. E, de alguma forma, Consuella não tinha essa pretensão política, mas a sua existência já era política, no sentido de desafiar as normas, de se impor na sociedade, de não levar desaforo pra casa, porque não era fácil sair na rua de dia, em uma época em que travesti só saía depois das seis da noite.
Tudo isso inspirou as outras e contribuiu para as mudanças que a gente vê posteriormente. Então retratar isso é importante paras novas gerações de travestis e mulheres trans, que estão lutando e brigando por um espaço. E acredito que é uma forma de estimulá-las a fazer os filmes e não eu. Para elas serem protagonistas das suas próprias obras, não serem simplesmente personagens.
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