“Coelho Branco, Coelho Vermelho”: o cabimento de um artista contestador e contestado

Peça do iraniano Nassim Soleimanpour foi interpretado por Ângelo Fábio em um experimento cênico que uniu teatro e performance

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Foto: Olímpio Costa/Pós-Traumático.

Coelho Branco, Coelho Vermelho
Texto de Nassim Soleimanpour. Montagem do coletivo pós-Traumático
Cine Teatro Bianor Mendonça Monteiro, Camaragibe – Recife

O espetáculo teatral Coelho branco, coelho vermelho, escrito pelo dramaturgo iraniano Nassim Soleimanpour em 2010, quando ele tinha 29 anos, teve sessão única no último dia 13, no Cine Teatro Bianor Mendonça Monteiro, em Camaragibe, região metropolitana do Recife, interpretado e coproduzido por Ângelo Fábio, que contou com a coprodução da Aurora Nova ao lado do seu próprio coletivo, o pós-Traumático. Como dita a dramaturgia, acessada pela primeira vez pelo intérprete no mesmo dia, a encenação chega sem ensaio e sem diretor, ainda que o autor e suas reflexões se façam presentes através de constante diálogo em voz alta com o ator e com o público.

É possível abordar desde várias perspectivas esse acontecimento, uma vez que o número foi encenado simultaneamente em diversos países ao longo dos últimos anos, porém peço a licença de Manoel de Barros para replicar aqui que “o quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade. A gente só descobre isso depois de grande. A gente descobre que o tamanho das coisas há de ser medido pela intimidade que temos com a coisa”. Dessa forma cabe neste momento falar, sim, sobre a experiência teatral ali desempenhada, em que o encontro, para além de obra, autor, ator e público, era também com o Cine Teatro Bianor, equipamento municipal de Cultura o qual Ângelo dirigiu entre 2017 e 2018. Quiçá a intimidade com a casa de espetáculos camaragibense se aguçaria conforme as suas portas se mantivessem abertas, o que timidamente acontece.

Não cabe aqui apresentar detalhes do espetáculo, a fim de que a mágica proposta por Nassin se perpetue e se renove a cada encenação, uma vez que cada ator precisa desconhecer o texto e portanto apresentá-lo uma única vez. Sendo cada uma das cidades por onde o espetáculo passou, singular, em Camaragibe, ao perceber a plateia repleta de jovens atores e no palco um experiente artista, o encontro tornou-se ainda mais particular.

O município de Camaragibe possui uma forte tradição em artes cênicas, seja na dança, na performance ou no próprio teatro, em que religiosamente se apresenta todo ano a Cia. Popular de Teatro com a Paixão de Cristo, na Vila da Fábrica, peça que também acontece em outros bairros, como o Santana e a Tabatinga, com outros grupos. Vale aqui ressaltar esse cenário para destacar o universo em que uma obra de arte contemporânea como Coelho Branco, Coelho Vermelho nos chega.

Já o cenário em que foi escrito a peça trata da realidade do Irã, em que os homens que não servem ao exército ficam impossibilitados de deixar o país, e neste sentido são as palavras de Soleimanpour que viajam, descortinando semelhanças entre os terrenos onde o texto alcança. Tendo escrito o espetáculo há dez anos, hoje em tempos de crise sanitária, ambiental e geopolítica, a peça torna-se ainda mais contemporânea. Nos descortina o fato de que não importa tempo e espaço, seremos categorizados como coelhos espertos ou não, e isso nos legará consequências.

O engraçado é o fato de Fábio não haver conhecido a peça, embora pareça ter sido escrita para um ator como ele. Contestador e contestado. Por quantas vezes foi Ângelo, ora gestor, ora conselheiro, ora artista, o coelho vermelho? A lógica de se contar a história do animal em um episódio da vida do autor se liga às fábulas em que sentimentos humanos são encontrados nos animais. Nesse caso, o de Nassim, são os sentimentos animais localizados nos corpos humanos que ao longo do espetáculo se revelam. 

A identificações tangem a labuta do corpo físico mas também da consciência coletiva política. Afinal, existe uma força maior que nos une em retomada do Cine Teatro Bianor, para assistir a um espetáculo iraniano, interpretado por um camaragibense da gema. Acredito que seja a arte última esperança, como diria Paulo Brusky. E que ela coloca todos a pensar que tipo de estado de exceção é esse no qual transitamos há gerações em mais de quinhentos anos. Nos ajuda a refletir ainda: e o que países e expressões culturais do sul global têm em comum em se tratando de subalternização por parte da hegemonia que dita quem são os terroristas ao passo que impõem sobre os demais suas ordens, geralmente bélicas, sejam estas físicas ou subjetivas a partir da doutrinação de consciências.

Coelho branco, coelho vermelho consegue abordar criticamente coisas sutis, como as vestes para se entrar no teatro; ao mesmo tempo, deixa escapar um elogio a uma possível mulher bonita ao final da plateia, e sabemos que ao longo de anos remeter a feminilidade à beleza é talvez uma das mais floridas formas de encarceramento da identidade cisgênero. Também consegue, enquanto texto da década passada, reforçar a binariedade macho e fêmea, o que também tornaria-se interessante que um ator, como o próprio Ângelo, pudesse assim, como em diversos pontos fez excertos ao texto original, recompor.

É um encontro através dos tempos. Coelho branco…, e não cabe a um registro crítico determinar as delimitações de um autor árabe. Há naquele país uma imposição fortíssima de controle de corpos, em especial das mulheres. Fazendo mais um arrodeio no tempo-espaço, agora verificamos que o elogio à beleza feminina, ou o simples observar desses traços, no contexto de Nassin vem a ser transgressor, uma vez que naquela cultura há um esforço por se invisibilizar essas singularidades.

Coincidentemente assistir por esses dias ao longa Babe: O Porquinho Atrapalhado, uma fábula em que animais conversam entre si e sua relação com os humanos apresentam suas contradições. No filme de Chris Noonan a supremacia imposta por determinadas espécies sobre outras, a começar sobre o próprio ser humano que puxa para si o papel de decisão sobre a vida dos demais animais, como se os próprios também não o fossem, em muito me lembra a lógica imposta em Coelho branco, coelho vermelho.

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O que seria do porquinho se não encontrasse em si o impulso para transgredir a natureza que lhe impuseram enquanto única finalidade morrer para alimentar seu amo? E o coelho vermelho, por sua vez, que mal fez em alcançar a comida sobre a escada? Porque a obtenção do sucesso, a ousadia, tende a ser tão criminalizada na sociedade, embora muitas vezes arquitetada para um bem comum. Atiram-se pedras em árvores que dão frutos, ao mesmo tempo, desconsideram as árvores que não frutificam, as galinhas que não são poedeiras, e nesse limbo o ator sem ensaio é um performer e os performers raramente são vistos com olhos generosos em cidades em que o status quo e hegemonia querem prevalecer ante as subjetividades.

Quem me dera haver outras oportunidades de encenação, na mesma casa, com atores mais jovens, quiçá inspirades por Ângelo, a reencenar Coelho Branco, Coelho Vermelho. Alguns deles assistiam conosco a peça, como os jovens atores camaragibenses Vini Leonam e Renato Pseudoartist0, e assim o ciclo da vida cênica se renova, em que um escuro de uma sala de teatro no subúrbio consegue reunir várias gerações de atores, atrizes, profissionais técnicos e espectadores. Cada nova apresentação, um novo sentido proposto, não só para os principais envolvidos – equipe técnica, autor, ator e plateia – mas também para a cena de artes cênicas em Camaragibe, para a gestão pública do equipamento cultural, e consequentemente para a sociedade.

Por fim cabe ressaltar aqui a grandiosidade e primor em que foi concebido tudo desde a pré-produção, ainda que na precariedade enfrentada desde a extinção do Ministério da Cultura e perseguição ideológica e criminalização de artistas. Peças de divulgação instigantes, primor na transmissão ao vivo (feita de maneira independente, diga-se de passagem) e estrutura de vídeo no palco, e mesmo a interpretação em Libras, por Poliana Alves. A luz desempenhada por Cleison Ramos, antigo parceiro de Fábio, também veio sem ensaio, cuja sensibilidade de alguém que há anos ama a iluminação, com conhecimento prévio da casa de espetáculos, pôde desenvolver. 

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