Por Nuno Talicosk, Tulio Vasconcelos e Alexandre Figueirôa.
Colaborou Paulo Floro
Em sua 16ª edição, o Festival No Ar Coquetel Molotov não deixou dúvidas de que há tempos deixou de ser apenas um festival de música para se transformar em um espaço de experimentações, vivências, com destaque para o público jovem. Na programação, além de suas mais de 20 bandas e artistas, teve ainda karaokê, espaço tattoo, barco-sofá, food park, feirinha. A diversidade musical é o carro-chefe do festival, que casa bem com a diversidade de pessoas que circularam pelo Caxangá Golf Club, na Zona Oeste do Recife. No Brasil de 2019, um espaço seguro e livre como esse é algo a celebrar.
Dividida em três três palcos – “Coquetel Molotov”, “Sonic” e “Natura” -, o evento recebeu desde a ciranda de Lia de Itamaracá e o brega-funk de Dani Costa, até pop experimental (Raça). Entre os nomes de destaque tivemos ainda Liniker e os Caramelows, Drik Barbosa, Black Alien e Sevdaliza.
No palco “Natura Musical”, a abertura, às 15h da tarde, ficou por conta da pernambucana Uana Mahin. A rapper e cantora teve a árdua missão de convocar o público para, sob um sol forte, dá início ao festival. Sua irreverência tomou conta da galera, que logo se reuniu, ignorando o sol, para curtir as músicas de Uana.
No mesmo palco, depois de uma calorosa abertura de Mahin, apresentou-se a também pernambucana Clarice Falcão. A cantora e atriz apresentou o repertório do seu mais novo trabalho, Tem Conserto. Sempre irreverente, ela reuniu uma multidão para cantar seus maiores sucessos, mesclando seu lado divertido e sofrido. Clarice deixou claro: “primeiro, vou cantar as músicas pra chorar. Então, podem chorar. Depois, canto as músicas pra transar, daí vocês já sabem, né?!”. Mesmo sendo de gêneros diferentes, Uana e Clarice mostraram o poder da música pernambucana e de suas raízes. O emocional bateu mais forte e o público pôde sentir esse êxtase.
Uma força chamada Lia
No palco principal, o “Coquetel Molotov”, apresentaram-se artistas de eletrônica, soul e funk, mas também a eterna Rainha da Ciranda, Lia de Itaramacá, que recentemente, recebeu o título de Doutora Honoris Causa, pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE e é Patrimônio Vivo de Pernambuco. Com um deslumbrante vestido rodado, Lia se apresentou com sua banda e trouxe, para uma fim de tarde no Recife, a ciranda de praieira.
Mesmo com a plateia lotada, Lia arrumou um jeito para, no meio daquela multidão, armar uma grande ciranda. Seu carisma e voz inconfundível fez desse show um dos pontos altos da noite. A cada pausa, uma onda de aplausos tomava conta daquela palco. No clímax, chegam os os versos “Eu sou Lia da beira do mar/ Morena queimada do sal e do sol/ Da Ilha de Itamaracá”, compostos por Paulinho da Viola na canção “Eu sou Lia”. Pura catarse no Caxangá.
A atual turnê, “Ciranda de ritmos”, na qual passeia por diversos ritmos populares da música pernambucana, como o coco e o maracatu, rodou o Brasil por anos e chegou à Europa.
O novo repertório da cirandeira traz não só uma brincante de ciranda, mas também uma cantora que se aventura por novos ritmos, como o bolero e o brega, e faz uma fusão entre tradição e contemporaneidade. Entre os compositores, nomes atuais, como Ava Rocha, Iara Renó, Alessandra Leão e Chico César, e de tempos passados, como o cantor brega José Ribeiro.
No auge dos seus 75 anos, Lia mostrou que é uma das maiores forças da música pernambucana atual.
Batuques, funks, raps: cabe tudo
O batuque chegou em alta com a MC Tha, ao iniciar seu “rito de passá” com a plateia no fim de tarde no palco Coquetel Molotov . Um dos nomes mais pedidos para esta edição do festival, a cantora encarnou uma identidade sensual para passear sua música quente e vigorosa. Tendo o funk como base, Thaís brinca com ritmos paraenses e nordestinos, joga trap, electro para azeitar a mistura e sintonizar sua música com a contemporaneidade. Umbandista, a MC tocou uma versão de “Jorge da Capadócia” para celebrar suas raízes.
MC Tha lançou seu primeiro álbum, Rito de passá, há apenas cinco meses. Ao unir funk e umbanda, pista e fé, tem lotado casas pelo Brasil. Também está se tornando figura disputada por festivais do país. O batidão, é bem verdade, veio antes da religião na vida da cantora. Ela já tinha um trabalho dentro da cena do funk produzido e criado na periferia paulistana. Talvez por seu estilo ela tenha sido abraçada por um novo público, principalmente o LGBTQ+, que aprecia o funk, mas não se vê representado ou confortável nos bailes tradicionais. Ela fez um dos melhores shows do evento.
Em seguida, subiu ao palco a cantora iraniana/holandesa Sevdaliza, que fez sua estreia nos palcos brasileiros. Conhecida por suas canções que navegam por temas como identidade, pertencimento e poder feminino, Sevdaliza misturou sua voz doce e suave com beats densos e uma pegada experimental cheia de sintetizadores. O resultado foi uma imersão musical cheia de personalidade. Ela começou a fazer sucesso com dois EPs de eletropop lançados em 2015.
O festival apostou com força em novas tendências da música brasileira contemporânea. Trouxe como grandes atrações artistas e bandas de projeção nacional recente e também promessas da cena independente, caso de Jurandex (que fez um show com muita instiga, ainda que para um público bem vazio, no Palco Sonic) e Raça, um dos nomes que precisa ser mais descoberto no cenário indie atual.
Que sorte a nossa termos Liniker
A apresentação de Liniker e os Caramellows foi um dos pontos altos da edição 2019 do No Ar Coquetel Molotov. A área do palco principal do evento foi pequena para a multidão que se espremeu para ouvir as músicas do novo disco da banda, intitulado Goela Abaixo, um dos melhores lançamentos da música brasileira deste ano.
O show, regado com uma intensidade melódica que mescla o soul e o blues com toques de funk e afro, trouxe um grupo afinado musicalmente e com a vocalista Liniker se mostrando segura e solta no palco, transmitindo uma energia que contagiou o público e levou os fãs a cantarem com ela os hits do álbum.
As canções de Liniker e os Caramellows falam de afeto, de paixão e o entrosamento entre a vocalista e os músicos e as backing vocals, testemunhado na performance do show do No Ar, transformaram a audição do show numa experiência envolvente e sedutora que mesmo na amplidão do espaço de um palco aberto foi intensa e contagiante. Não é à toa que Liniker foi a primeira artista trans a ser indicada para o Grammy Latino, um fato que foi destacado pela artista em sua primeira participação no festival pernambucano.
Após a extasiante apresentação de Liniker, o palco principal continuou fervendo com a ótima performance do rapper Black Alien. Com uma longa carreira iniciada ainda nos anos 1990 com passagem marcante no grupo Planet Hemp, Black Alien trouxe o show do seu mais novo trabalho, Abaixo de Zero: Hello Hell.
O álbum tem letras fortes, fruto dos problemas que o artista enfrentou com as drogas e a depressão, que contagiaram o público. Alien trouxe também canções antigas que falam da vida da periferia, da batalha dos jovens contra a violência policial, e como ele mesmo destacou: “são músicas antigas da década passada, mas que continuam atuais, porque nada mudou”. A galera entendeu o recado e cantou e dançou com ele, caso do hit “Babylon By Gus”.
Muito bacana também foi a participação do pernambucano Luiz Lins. O artista destacou como estava exultante por estar na line-up do palco principal do No Ar e fez jus à indicação.
Apresentou um show onde, mais uma vez, provou porque é um dos nomes de destaque da nova cena musical. Suas raízes são o hip hip e o rap, mas Lins abre espaço para uma musicalidade experimental e o resultado é um som diverso e uma poética nas letras de suas canções capaz de ser dura e terna e que dão ao rapper um estilo pessoal e fora dos rótulos.