SOTAQUE E SOFRIMENTO
Repleto de personagens esteriotipados, peça faz autêntica comédia com tragédias do povo baiano
Por Isabella Valle
Ó Paí, Ó. Dois presunto. Parece os filhos de dona Faustina”, repete a baiana, mostrando a notícia do jornal para todos seus fregueses. É a questão social da violência sofrida pelo povo da periferia que une o começo e o fim da peça Ó Paí, Ó!, que se apresentou no Teatro Santa Isabel, nos últimos dias 4 e 5. O espetáculo fez parte da programação do Festival do Teatro Brasileiro (FTB) – Cena Baiana em Pernambuco.
Repleto de personagens estereotipados, a encenação tem cara de Bahia. É prostituta, travesti, sonhadora, mulher-macho, jogadora de búzios, compositor gago, malandro, cantora pop e até uma evangélica ferrenha, todos em cima de um palco (seria um trio elétrico?), tratando de temas como aborto, globalização, mídia, religião, drogas, música de massa, violência, preconceito (seria um carnaval?). Isso com o mais preguiçoso e cantado sotaque baiano. Parece uma cena meio tosca? Pois não é. O Bando de Teatro Olodum, dirigido por Márcio Meirelles e Chica Carelli (fundadores do grupo em 1990), consegue harmonizar as interpretações de forma que todo esse carnaval não fique forçado, abordando os temas com sutileza e muito bom humor. Além de música tocada ao vivo e coreografias com muito axé.
A história se passa numa Terça-Feira de Bênção, no Pelourinho. Esse é um dia de celebrações conhecido em Salvador, em que o povo faz uma verdadeira festa popular, profanando o teor religioso do evento. O problema é que “a brancada sobe pro Pelô e a negrada tá tendo que sair” e essa questão levanta reflexões sobre a forma com que o turismo é encarado na Bahia e a influência que isso tem para os próprios baianos, que parecem viver pra se exportar ou serem eliminados do cenário. Para expor essa realidade e sugerir as críticas, moradores de um cortiço do pelourinho tecem a história. Não há uma narrativa bem estruturada, mas uma série de diálogos inteligentes que vão conduzindo o dia em que dois meninos foram assassinados, mas que todos parecem mesmo é se preocupar com a falta d`água no prédio, em pleno dia de festa.
A proprietária do cortiço é uma evangélica linha dura, que não suporta a sexualidade latente do povo baiano, expressa nas roupas, no gingado, no vocabulário, nos olhares. Dividindo o cenário com ela, há uma mestiça que não quer nem lembrar de sua origem negra – “a minha gengiva é rosa!” –, apesar de adorar um requebrado, e sonha em encontrar um gringo e ir ao exterior. Enquanto outra está de volta da Austrália, depois de ter sofrido horrores para juntar um trocado e, claro, se exibir em seu regresso à Bahia. Também há a proprietária de um bar, Neusão, uma cabra-macho que veio do interior, adorou Salvador está construindo a vida com o seu negócio e dando toda bola pra professorinha da comunidade, que faz abaixo-assinado pra melhorar a condição da escola. Além deles, muitos outros vão se cruzando, conversando, se mostrando e, a partir daí, revelando as misérias e as graças dos “pretos, pobres e nordestinos”.
A peça é uma comédia autêntica, que foge ao simples besteirol, já que o trágico e a crítica está por trás de muita dança, música e de todas as boas risadas do público. Os personagens são reais, por mais que falem e façam coisas absurdas em gestos esparramados – a idéia de passar a Bênção para o domingo, porque o carnaval duraria mais, por exemplo, mostra que ninguém se importa mais com a origem das coisas ou o que elas significam. A peça funciona como um espelho e as gargahadas vêm principalmente da identificação.
Ó Paí, Ó! é uma excelente obra para o teatro (bem melhor que o filme, de Monique Gardenberg, do ano passado), montada pela primeira vez em 1992, o cenário praticamente inexistente e a interação com o público (o boneco de Olinda foi contemplado nos improvisos) estimulam a imaginação. Além disso, os painéis, com dois corpos humanos desenhados de fundo, possuem uma anatomia inspiradora de críticas, que, por mais que o povo baiano seja peculiar, podem muito bem ser expandidas para outras regiões do Mundo, do País, do Nordeste. Afinal, “ó, paí, ó!” podia ser muito bem um “espia!” pernambucano, o Pelô podia ser o Morro da Conceição e aqueles personagens estariam levantando as mesmas questões. Só mudaria o figurino (haja sandália de couro) e, claro, o sotaque.
[+] LEIA A COBERTURA DO FESTIVAL DE TEATRO BRASILEIRO: CENA BAIANA