Depois da ameaça de quase não acontecer, o festival confirmou a vocação de ser um difusor importante do cenário de quadrinhos
Da Revista O Grito!, em Belo Horizonte
O Festival Internacional de Quadrinhos de Belo Horizonte (FIQ) reúne a cada dois anos mais de 500 artistas que trabalham com quadrinhos, além de editoras, coletivos, profissionais da área em geral. Tem debates, mesas, estandes e exposições. E entrada gratuita. Ou seja, muito do que já conhecemos de encontros de HQs no Brasil e no mundo. Mas seu maior diferencial está no cerne da sua proposta: é um evento de quadrinhos e somente de quadrinhos. Isso, por si só, é corajoso, pois bate de frente com a pressão mercadológica de se atar ao capital da indústria do entretenimento. Não vimos por lá nenhum estande de estúdios de cinema nem mesmo a presença de atores de alguma série hypada de Netflix. Teve apenas e tão somente quadrinhos.
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Por esse posicionamento o FIQ acaba por fomentar uma outra indústria, essa ainda não estabelecida, a das histórias em quadrinhos no Brasil. A ideia de indústria cultural, de se enquadrar em uma lógica de produção que visa o lucro, faz todo o sentido para o momento atual das HQs no país. Mais de 500 quadrinistas estavam no evento como artistas empreendedores e a grande maioria saiu de lá com suas tiragens esgotadas. Um giro pelo evento ajudou a observar a diversidade da produção, outra característica essencial para sustentar uma indústria. Muitos eram quadrinhos de nicho, o que até um passado recente era quase inexistente no país.
A Shockdom, editora italiana que chegou ao país no final do ano passado, apresentou seus álbuns em quadrinhos no estilo europeu, apostando no segmento de aventura, fantasia e ficção-científica. Com quase 10 títulos em poucos meses, as apostas são altas. A Draco destacou seus quadrinhos de terror e séries brasileiras de suspense. Outras editoras como a Mino e a Nemo, marcaram presença e trouxeram um catálogo bastante amplo, com muitos autores brasileiros presentes.
Entre os independentes, essa diversificação, tanto no formato quanto nos temas, também se viu. Em edições passadas era comum ver mesas de artistas com uma predominância de fanzines e trabalhos autorais mais experimentais. Neste ano a maior parte das HQs eram livros lançados de forma autônoma, mas inseridos dentro da mesma lógica que as editoras tradicionais. Destaque também para a presença de projetos inovadores, como os novos lançamentos de Laalo, Aline Zouvi, Aline Lemos, além de novatos como Roger Vieira e Jessica Groke.
Foi também a oportunidade de fazer negócios, seja na rodada organizada em parceria com o Sebrae, seja através do networking entre editores e artistas.
Ao chamar para si essa responsabilidade de ser um centro convergente de negócios, o FIQ reafirma sua relevância de ser um fomentador da cena brasileira autoral. E torna-se um centro importante de uma indústria ainda emergente. Evidentemente que o caminho para alcançarmos o estágio de países europeus, orientais, ainda é longo. As HQs também estão distantes do patamar de outras expressões, como o cinema, literatura e música, que contam com investimentos públicos dos Estados e um maior número de editais. Com tiragens ainda modestas e distribuição ruim, o país ainda tem grande potencial para crescer.
Além disso, muitas editoras que trabalham com quadrinhos não apostam em marketing e divulgação de suas HQs (do mesmo modo que fazem com livros de ficção). Em mais uma edição, casas editoriais importantes não deram as caras no evento.
O outro lado do FIQ, além desse olhar mais econômico, é seu carisma e personalidade. Ouvi de um editor que vir ao FIQ, mesmo que desse prejuízo (o que não aconteceu) já valeria a pena. Existe esse clima de confraria no ar e um espaço confortável e seguro. Entre o público vimos bem mais crianças que o ano anterior, além de adolescentes, visitas de escolas e presença bem diversa de idade e gênero. É o oposto do clima nervoso que vemos em muitas convenções.
Esse descolamento do “público nerd” faz um bem enorme ao festival e ao cenário de quadrinhos como um todo. Ler gibis é pra todo mundo, bom nunca esquecer.
Boas conversas
Debates bem interessantes rolaram no auditório Toninho Mendes este ano. Com curadoria de Ana Koehler, Carol Rossetti, Daniel Werneck e Fabiano Azevedo, o evento trouxe uma preocupação em mostrar diversidade entre os convidados, sendo metade de homens e mulheres. Entre os destaques da programação estavam Dave McKean (autor de Sandman e Violent Cases), Powerpaola (Vírus Tropical), Érica Awano (homenageada este ano), a francesa Gauthier e Marcelo D’Salete (de Angola Janga).
Dave McKean teve a mesa mais lotada. Autor de Sandman, Violent Cases, Mr. Punch, Asilo Arkham, entre outros, ele veio lançar no Brasil seu novo trabalho Black Dog, HQ que mostra a vida do pintor inglês John Nash através de seus sonhos. Chamou a atenção em sua mesa a apresentação que ele fez dos seus trabalhos. Além de quadrinhos, McKean reforçou o quanto é um multi-artista ao apresentar seus trabalhos menos conhecidos que incluem livros infantis, peças de teatro, filmes, performances, exibições de arte e música. Sua mesa foi bem divertida e contou com a tradução simultânea do quadrinista Felipe 5Horas, o que rendeu momentos descontraídos e com muita interação com McKean.
Um dos nomes mais inovadores dos quadrinhos atualmente, Dave McKean surgiu no boom de novos autores ingleses no mercado norte-americano. Seu trabalho em Sandman, escrito por Neil Gaiman, trouxe uma quebra de paradigma para a produção de comics e ajudou a potencializar o sucesso do selo Vertigo. “O que fazíamos na Vertigo àquela época atraíram atenção de audiências não acostumadas aos quadrinhos”, disse McKean. “Eles não ligavam para o que estávamos fazendo, por isso tínhamos muita liberdade criativa. Quando enfim descobriram como era o nosso trabalho vi que era hora de sair”.
O debate com Erica Awano também rendeu bons momentos. Autora conhecida pelo seu trabalho em Holy Avenger (ainda hoje uma das séries de maior sucesso dos quadrinhos brasileiros), ela venceu a timidez para contar sua história como quadrinista. Filha de uma família tradicional japonesa, Érica precisou desafiar os pais para fazer o que queria.
“Comecei a fazer quadrinho por pirraça. Na família oriental os pais decidem o que os filhos vão ser. Certo momento o meu pai abandonou a família para ‘buscar a felicidade’. Daquele momento em diante decidi que não seria a filhinha perfeita”, disse. Sobre Holy Avenger ela lembrou de como foi criar os personagens com o roteiro de Marcelo Cassaro. “Se eu soubesse à época o que a série se tornaria eu jamais teria aceitado”, brinca. “Fazer uma revista mensal por tantos anos é algo insano”.
A quadrinista Powerpaola esteve no evento para apresentar seu novo livro qp, que saiu pela Lote42. Ela participou de uma mesa sobe quadrinhos autobiográficos com a participação de Cynthia B., Samantha Flôor, Brendda Costa Lima e Rebeca Prado. Destaque ainda para a mesa sobre quadrinhos e ideologia que teve participação de Luiz Gê, Alves e Nilson. Gê fez uma fala apaixonada e empolgou o público. Nome veterano das HQs, ele trabalhou em títulos como Circo e fez sucesso com charges políticas em jornais. Ele chamou atenção para o perigo que é pedir intervenção militar e disse que hoje vivemos um ditadura midiática. “Sinto falta de uma imprensa alternativa forte como existia antes, pois é necessário uma outra narrativa além dessa que vemos nas TVs, em todos os jornais, na Veja, na Globo”, disse.
Além das mesas o FIQ ainda contou com oficinas, muitas sessões de autógrafos, uma mostra de cinema e até uma roda de conversa sobre representatividade das mulheres nas HQs (que não estava na programação). Foram muitos FIQs em um. Em um momento como esse no país, ver milhares de artistas e público interagindo, consumindo uma arte autoral e original, refletindo e se divertindo, é algo poderoso.
Erramos: Uma versão anterior deste texto trazia o nome de Rebeca Prado escrito erroneamente como “Roberta Prado”. O texto já foi alterado. (06/06, 22h46)