Mix de série de horror com narrativa distópica, a série Tokyo Vampire Hotel, assinada pelo polêmico poeta e diretor japonês Sion Sono, configura-se como uma das mais importantes obras produzidas para streaming dentro do que se convencionou nomear como a Era de Ouro das séries, sendo a contrapartida perfeita para obras de referência da indústria do entretenimento como Game of Thrones. A despeito das inúmeras diferenças estilísticas, Sono segue uma seara aberta por outros realizadores importantes do cinema europeu como Rainer Werner Fassbinder, Kristopher Kieslowski e Peter Grenaway que utilizaram formatos tradicionalmente televisivos para construir obras críticas e autorais. Sono criou sua minissérie da ficção seriada para criticar de forma dura e indigesta o Japan Way of Life que caracterizou o Pós-Guerra, e seu deslumbramento com a sociedade estadunidense de consumo, e ironicamente usou como instrumento o grupo global Amazon.
A sinopse nos remete a um clichê das histórias de vampiros: a luta entre descendentes do Conde Drácula, conhecido como Vlad, o empalador, e do oponente de seu pai, o príncipe húngaro Matei Corvin (1458-1490), pelo poder sobre a vida humana no planeta. O castelo de Corvin, na Romênia, é totalmente cercado por tuneis misteriosos, e é um dos mais antigos da Europa. Vlad teria sido feito prisioneiro no castelo de Corvin, também conhecido como Casteli de Hunyadi, como parte de um acordo feito com seu pai, Vlad II – ao menos é o que consta da “história oficial” – para conseguir o apoio de Corvin na luta contra o império Otomano. Foi em uma masmorra no castelo de Tokat, localizado na região centro-norte da Turquia, que o jovem Drácula ficou encarcerado por cinco anos, até 1447. Os cenários suntuosos da România incluem o Castelo de Drácula, the Bran Castle, as minas de sal Salina Turda, além dos estúdios Nikkatsu no Japão. Os atores romanianos, creditados apenas em japonês, são do Teatro Nacional daquele país, e a obra usou parcialmente investimento público.
Para Sono, essas nuances históricas entre Dracula e Corvin são exploradas apenas superficialmente. Somos confrontados com um Drácula que sonha vingar-se de Corvin, na verdade outro vampiro. A história se passa entre a România, lar de Drácula, e o Japão, para onde teriam migrado os integrantes do clã Corvin, os neovampiros. A mocinha da história é Manami, um dos três bebês que teriam nascido numa data especial, e que foram alimentadas com sangue de Drácula por seus seguidores, e mantidas em lares especialmente organizados para acolhê-las. É divertida essa encenação da família perfeita para as jovens vampiras predestinadas a vingarem seu mentor, do qual não possuem a menor recordação. As jovens sentem-se acolhidas em suas famílias artificiais e é de um humor negro os episódios em que se ferem ou têm algum problema em sua trajetória humana, com todos os demais personagens que compõem o ambiente “natural”, todos integrantes do clã, movimentando-se de maneira robótica, em seus esforços para proteger as jovens cobaias de Drácula dos azares de uma vida normal. As cenas evidenciam o caráter ambíguo da sociedade contemporânea japonesa, colocando suas personagens em display como peças de um jogo virtual.
As famílias são incrivelmente ocidentalizadas, dos trajes a forma como se comportam, e as principais datas de comemoração do mundo bíblico cristão propagado pelos EUA estão lá – o Natal, cujo cumprimento é Merry Christmas, com todos os pratos natalinos convencionais, e o aniversário, que no Japão é efetivamente comemorado com o Happy Birthday cantado em inglês. Sono dá uma visibilidade muito grande a essas datas comemorativas, e é interessante como elas contribuem para compor o clima de ilusão e armadilha, que preparam a audiência para o choque da descoberta da verdadeira natureza das meninas.
Manami vai ser a única sobrevivente das três, e será enviada para confrontar o clã Corvin no período que antecede a comemoração dos seus 22 anos, marco de sua transformação. Em busca dela está a agente vampiro K, a serviço do Drácula, à qual somos introduzidos de forma sombria no primeiro episódio, uma visão perversa da primeira cena de Pulp Fiction, que se passa num pub em um assalto que se transforma num banho de sangue. Essa visão do sangue jorrando é uma constante ao longo da série, e a esse jorro o diretor dedica cenas inteiras, a um ponto em que perde totalmente o significado, confundindo-se com o jorro da vida, e com o próprio fluxo menstrual feminino. Afinal, o hotel em que se passa a outra metade da série é estruturado a partir da vagina de uma mulher, uma vampira ancestral. A um determinado momento, as performances banhadas de sangue convertem-se em algo tão banal, que não é mais possível sentir nada.
As mulheres possuem um papel fundamental nessa alegoria de horror composta por Sono. O mito da vagina dentada perde espaço para o da vagina pulsante, como um coração, em que as mulheres pontuam a narrativa o tempo todo, sedentas de vingança e de reconhecimento. São poderosas, e seus machos vão sendo decapitados como os parceiros da viúva negra, a aranha que destrói o amante após a cópula. Aquelas que desconhecem seu verdadeiro papel, como Manami ou K, perdem rapidamente o posto para as predadoras. A morte da mãe e de sua representação como mantenedora da ordem familiar, o alvo principal do autor aqui, é imprescindível para cumprir todas as profecias. As mães são o sustentáculo desse mundo em desalinho que requer uma nova ordem, e que para isso, precisa ser destruído. As festas de copulação promovidas pelos neovampiros para fornecer alimento saudável para o novo mundo mostram a que vieram antes que a última tomada encerre esse pesadelo kitsch.
A produção foi lançada em 2017 em diversos festivais de cinema mundiais, a partir de um promo condensado em formato de filme de 2 horas e 22 minutos. Foi a primeira produção original japonesas da Amazon Prime, que diferentemente da Netflix, não vem apostando suas fichas principais numa estratégia de criação de um circuito transnacional e intercultural de exibição e produção. Na ocasião que antecedeu a sua produção e lançamento, foam anunciadas a produção de outras séries japonesas como Kamen Rider Amazons, Hapimari (Happy Marriage), Businessmen vs Aliens, Fukuyado Honpo (Kyoto Love Story), Harumi’s Kitchen, Hitoshi Matsumoto Presents Documental series, Ultraman Orb The Origin Saga, Hidehiko Ishizuka’s Sake Tour e do reality The Bachelor Japan. Sua abertura é composta pelo trio indie japonês tricot, formado pelas três guitarristas Ikumi Nakajima (Ikkyu), Motoko Kida (Motifour) e Hiromi Sagane (Hirohiro), originárias de Kyoto, com batidas que celebram o pós-punk mesclado a sons eletrônicos num ritmo classificado como math rock (ou rock matemático), vanguardista e experimental ao extremo, totalmente apropriado ao estilo Sion Sono.