A decisão da Associação dos Produtores de Artes Cênicas de Pernambuco (Apacepe) em retirar, da grade de programação do Janeiro do Grandes Espetáculos (JGE) 2019, a peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, protagonizada pela atriz e mulher trans Renata Carvalho, não deixa de provocar reações. Depois da saída de várias produções pernambucanas do evento, na tarde de ontem ocorreu uma das manifestações mais significativas contra a covarde e desastrada resolução dos organizadores do JGE.
Artistas trans foram convocados por Sophia William e Aurora Jamelo para participarem do debate Janeiro Sem Censura. Com apoio do Espaço Acolher Mães Pela Diversidade, cerca de 70 pessoas atenderam a convocação para discutir não apenas o episódio da censura ao espetáculo de Renata Carvalho, mas concretizar ações em defesa da representatividade trans na cena cultural do Recife.
Sophia William, uma das realizadoras do Festival Transborda de Cultura sem Gênero, como muitos outros artistas, manifestou sua posição contra a Apacepe nas redes sociais, mas foi surpreendida, sobretudo, pelas inúmeras indagações postadas sobre o que seria feito após o boicote ao JGE. E foi aí que ela viu a necessidade urgente de uma ação. “A empatia dos grupos teatrais que apoiaram Renata Carvalho foi muito bem-vinda e importante, mas esse apoio será que vai continuar quando o Janeiro acabar?”, foi essa a primeira questão que lhe ocorreu. Ao abrir o debate ontem, Sophia foi enfática: “a censura às trans começa antes de chegar ao palco”.
A fala de Sophia não deixou espaço para dúvidas de qual é o sentimento compartilhado pelas pessoas trans com relação a como pensa e age a sociedade com esse grupo. Antes de prosseguir suas observações ela perguntou, aos presentes, quantos conheciam e eram amigas de pessoas trans e quais delas tinham convidado trans femininas ou masculinos para atuarem nos seus espetáculos.
O silêncio instalado foi o mote para ela apontar que os corpos das pessoas trans, são corpos silenciados e por isso é preciso abrir espaços de fala para elas. “A arte, por enquanto, é um dos poucos lugares onde podemos falar”, ressaltou. “Não vemos mulheres e homens trans atuando em outros setores sociais, apenas alguns privilegiados como eu têm acesso a esses lugares, fora isso resta a prostituição”.
Por conta do cancelamento do espetáculo O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, segundo Sophia, muitos grupos teatrais programados no JGE a procuraram antes de definir uma posição. “Qualquer atitude gera consequências e eu sempre apontei os prós e os contras de qualquer que fosse a decisão. Acusaram-me de promover a segregação da classe artística, mas não podemos mais colaborar com esta marginalização e silenciamento dos corpos trans onde quer que seja”.
Em sua exposição, Sophia falou ainda longamente da peça Geni, encenada pela Bernache Cia de Teatro, que preferiu não aderir ao boicote ao JGE. Ela não criticou a decisão do grupo, mas observou o equívoco cometido pela encenação ao colocar um trans fake, ou seja, um ator cisgênero, para atuar como Geni. Ela destacou como a representatividade é importante e questionou por qual motivo uma atriz trans não foi convidada para o papel. Segundo Sophia “esse tipo de atitude só reforça o discurso da sociedade que não reconhece a mulher trans pelo que ela realmente é, preferindo vê-la apenas como um homem vestido de mulher”.
Polêmica
As declarações de Sophia não demoraram a provocar reações em alguns participantes do debate. Embora afirmassem concordar com ela, alguns atores disseram que se viram pressionados a sentir culpa por já terem interpretado um papel que, pela argumentação apresentada, deveria ser dado a uma trans. Um desses foi o assistente de direção da Bernache Bruno Cadete. Segundo ele, “a companhia decidiu permanecer no JGE uma vez que o espetáculo Geni denuncia a intolerância da sociedade com relação ao ‘homossexualismo’ (sic) e que em nenhum momento eles apoiaram a censura a Renata Carvalho”.
Alguns presentes reagiram com certa rispidez às declarações de Cadete e suas imprecisões nos termos usados, embora tenha ficado claro que o deslize cometido pela Bernache, a julgar pelo que falou o seu assistente, foi muito mais fruto de desconhecimento, por parte dos integrantes do grupo, das principais questões em debate hoje sobre gênero e representatividade LGBTQ do que um desejo consciente de provocar polêmica. Felizmente, algumas pessoas perceberam isso e interviram com equilíbrio, sugerindo ao grupo mais cuidado e mais estudo ao lidar com o tema.
A atriz trans Aurora Jamelo, também curadora do Transborda, lembrou a importância da representatividade trans não apenas no teatro como em outras expressões artísticas. “Colocar um ator homem para interpretar uma mulher trans é reforçar a ideia de ver o corpo trans feminino como um corpo masculino”. Sophia William destacou a importância de se entender outras vozes. “Se eu vejo um corpo trans no palco eu me sinto representada. No presente a licença poética não cabe em todos os corpos. Não serve como desculpa. Um adolescente trans ao ver alguém idêntico a ele no palco, vai saber que tem saída para ele”.
Ela também criticou o que chamou de falta de responsabilidade afetiva de quem vai estudar as pessoas trans para realizar trabalhos artísticos sobre o tema. “Elas sugam nossas vivências, nos fazem sentir como se estivéssemos numa mesa de dissecação e depois nem sequer voltam para nos falar do resultado do trabalho”.
Momento histórico
O debate Janeiro Sem Censura, não resta dúvida, foi uma ação propositiva das mais oportunas tendo em vista o momento político que vivemos. Em 25 anos de existência, essa foi a primeira vez que um espetáculo foi retirado da grade do JGE, mas como bem observou o encenador e ator Marconi Bispo “foi também a primeira vez que a classe artística parou para ouvir artistas trans”.
O encenador e professor Rodrigo Dourado exaltou o desejo de mudança que o encontro estava revelando e que vai muito além do JGE. “Estamos vivendo um momento histórico porque estamos juntos pensando em novas formas de fazer arte”. Para ele o momento é de fazer alianças. “Eu agora entendo quando as pessoas falavam que durante a ditadura elas eram mais criativas. Quando percebemos que a nossa liberdade está em risco, precisamos nos juntarmos e reagirmos”.
Por fim, Dourado lembrou a situação vivida em julho do ano passado com a censura ao espetáculo de Renata Carvalho no Festival de Inverno de Garanhuns. “Naquele momento, diversas pessoas por solidariedade e empatia se uniram e juntas enfrentaram todos os obstáculos para a peça ser apresentada”. Segundo ele essa empatia hoje já não basta. “Sophia, Aurora e outras trans estão vivendo um processo de descoberta e adquirindo uma consciência que as transformam em lideranças para que essas pessoas assumam os lugares a que têm direito e com isso possam mudar a história”.
Repúdio e inquérito
A atriz Renata Carvalho, ao chegar ao Recife, desabafou sobre a saída do espetáculo do festival. “Eu sei o que é a censura do corpo trans, mas a minha arma é o teatro. É com ela que eu respondo. Do teatro eles não vão me tirar”, disse ela ao Observatório G. “É muita tristeza porque a arte não pode ser cerceada de maneira nenhuma. Eles nem tentaram entrar em contato com a gente. Simplesmente cancelaram a apresentação”, contou ela.