Por Daniela Rebelo
Do Global Voices
No meio de uma eleição profundamente polarizada, com pesquisas lideradas, por uma ampla margem, pelo ex-presidente de centro-esquerda Luiz Inácio Lula da Silva e pelo atual presidente da extrema-direita Jair Bolsonaro, a religião tem sido um dos temas centrais no cenário político brasileiro.
Com uma população de 215 milhões de pessoas e mais de 150 milhões de eleitores, o Brasil tem cerca de 80% de sua população se identificando como católica ou evangélica. Ambos os candidatos têm trabalhado estrategicamente para atrair este eleitorado cujo apoio pode chegar a decidir o próximo presidente quando os brasileiros forem votar em 2 de outubro.
Uma pesquisa do instituto Datafolha mostra que cerca de 48% dos brasileiros consideram a religião ao escolher seu voto, enquanto 34% afirmam que não. É importante notar que nem evangélicos nem católicos são grupos homogêneos ou unânimes.
Jair Bolsonaro é conhecido por usar um slogan recorrente: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Apesar do fato de se identificar como católico, muitas pessoas acreditam que, na verdade, ele é evangélico. A confusão é compreensível, pois ele está mais próximo dos evangélicos na política, foi casado por um pastor com uma mulher evangélica, e foi batizado por outro pastor, no rio Jordão, em 2016, vestindo uma túnica branca.
Em 2018, quando ele foi eleito presidente, após quase três décadas no Congresso, muitos evangélicos no Brasil viram Bolsonaro como “uma resposta a suas orações“. Três anos depois, quando teve que nomear um juiz para a Suprema Corte, ele disse que a pessoa deveria ser “terrivelmente evangélica” e escolheu seu então ministro da justiça André Mendonça, também pastor.
Atualmente, Bolsonaro tem o apoio de quase 50% dos evangélicos, de acordo com uma pesquisa Datafolha de 23 de setembro, contra 32% para Lula.
Ana Maria, católica e professora da rede pública, é uma delas. Ela é identificada aqui sob um pseudônimo, já que deseja permanecer anônima por razões de segurança. Ela contou à Global Voices (GV) pelo WhatsApp: “Um tempo atrás, se eu achasse que o candidato entendia de economia, eu votaria nele. Hoje entendo que não é só isso que importa. O presidente não pode ser pró-aborto, assim como não pode ter uma ideologia socialista/marxista. Estes são alguns dos critérios que eu avalio.”
Lula, também católico, lidera entre essa população, ele tem 52% contra os 28% de Bolsonaro, novamente de acordo com o Datafolha. O ex-presidente disse que se opunha a misturar religião e política; mas, no início de setembro, também apareceu orando com pastores no Rio.
Polarização religiosa
Na convenção do partido de Bolsonaro, em julho, a primeira-dama Michelle Bolsonaro apresentou seu marido como “aquele escolhido por Deus” que tem um “projeto de liberdade para a nação”.
Vinicius do Valle, cientista político da Universidade de São Paulo e diretor do Observatório Evangélico, disse à GV em entrevista por telefone que, especialmente na última década, a polarização entre os setores conservadores evangélicos e os movimentos sociais de esquerda tem se intensificado no país.
Por um lado, há discursos em defesa das pautas conservadoras e morais, antiaborto e direitos LGBTQIA+, e em defesa de um “núcleo familiar heteronormativo”. Por outro lado, os movimentos sociais suscitam debates sobre gênero, sexualidade e direitos humanos.
“Isto criou uma coalizão eleitoral entre setores evangélicos e partidos de direita. Dentro dela, em 2018, foi vista uma aliança nacional com Bolsonaro”.
O Brasil é um país profundamente católico, representando 50% da população, e cerca de 30% de evangélicos, ainda de acordo com o Datafolha. O número de evangélicos, no entanto, dobrou nas últimas duas décadas.
“O país está passando por uma transição religiosa na qual o catolicismo está perdendo importância e o Brasil está se tornando mais evangélico”, disse Do Valle.
Com 181 deputados e 8 senadores, a “Frente Parlamentar Evangélica” é composta por membros de 80% dos partidos representados no Congresso Nacional, e vota mais de acordo com as propostas do governo Bolsonaro do que com o conjunto de deputados, aponta o Observatório do Legislativo Brasileira (OLB) e o Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
No entanto, os evangélicos no Congresso Nacional não são um bloco monolítico, mas um grupo plural, diz ele.
“Se os evangélicos formassem um partido político hoje, seria o maior partido do Congresso Nacional”, explica Do Valle. “Eles têm suas diferenças, mas em sua maioria são semelhantes em termos de ideologia”.
Entre as isenções fiscais para pastores e as indicações aos tribunais, gabinetes estratégicos foram ocupados por pastores e líderes religiosos durante o mandato de Bolsonaro. O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, e o Ministério da Educação, por exemplo, não pouparam esforços para barrar os debates sobre gênero e educação sexual no Brasil.
“Fake news”
Antônia Lúcia, 43 anos, congregante da Igreja Evangélica Assembleia de Deus em Belo Horizonte, é outra eleitora que declara sua preferência por Bolsonaro. Esta igreja protestante pentecostal tem origem em Arkansas, nos Estados Unidos.
Ela faz parte de um grupo de eleitores de Bolsonaro que recebem atualizações diárias sobre ambos os candidatos através do WhatsApp. Uma das mensagens que ela recebeu dizia que, se eleito, Lula perseguiria os cristãos. Todas as mensagens do grupo são a favor do presidente, disse ela à GV em uma entrevista por telefone.
Os bolsonaristas têm tentado vincular as ações do regime de Daniel Ortega na Nicarágua, que persegue os padres católicos, a Lula, uma vez que são aliados.
“Se isso vai acontecer ou não, ninguém pode ter certeza, mas considerando tudo o que li e recebi sobre ele e os partidos de esquerda, não duvidaria que aconteça”, diz ela.
Notícias enganosas para atrair os eleitores religiosos contra o candidato que lidera a corrida presidencial têm sido compartilhadas milhares de vezes nas redes sociais.
Entre elas, estão postagens dizendo que o Partido dos Trabalhadores de Lula (PT) fechou igrejas durante seu mandato no governo, e que o ex-presidente apoia a invasão de igrejas e a perseguição aos cristãos. Estes conteúdos já foram negados por agências de verificação de notícias, tais como a Agência Lupa.
O tema também apareceu durante o último debate presidencial na TV Globo em 30 de setembro, trazido por um candidato que se apresenta como padre; ele entrou na disputa no último minuto, depois que o candidato de seu partido foi desqualificado da candidatura por sentenças judiciais.
O homem conhecido como Padre Kelmon diz fazer parte da Igreja Ortodoxa do Peru, mas a Igreja Ortodoxa tradicional diz que ele não tem nenhum vínculo com instituições religiosas de tal fé no Brasil. Ao questionar o ex-presidente, insinuou que Lula, se eleito, poderia perseguir os cristãos. Fora do ar, ele foi visto aparentemente trocando anotações com Bolsonaro.
Peso na votação
Na véspera do bicentenário da independência do Brasil, no início de setembro, padres e grupos conservadores dentro da Igreja Católica manifestaram seu apoio em favor de Bolsonaro, citando a situação da Nicarágua e outros tópicos alinhados com a política do presidente.
Enquanto isso, a um mês das eleições, outro grupo com 450 padres publicou uma carta aberta contra sua reeleição, dizendo que uma nova vitória implicaria uma “tragédia anunciada” que poderia colocar o Brasil “em uma crise humanitária mais profunda”. Eles escreveram: “Um discípulo de Jesus consciente não pode reeleger um homem que, com palavras e obras, demonstra ser o oposto de tudo aquilo que Jesus é e anuncia.”
Considerando a má gestão de Bolsonaro durante a crise da COVID-19 no país, atrasando a vacinação e se opondo às medidas sanitárias, bem como falhando em conter a fome, parece que, embora a religião continue a ter um peso significante, fatores econômicos também podem determinar os votos.
“É possível que parte do eleitorado cristão tivesse mais simpatia por Bolsonaro antes. Mas agora, diante de condições de vida difíceis, possam votar em Lula, que é associado a um momento de crescimento econômico”, analisa o professor de Ciências Políticas Fábio Lacerda, em entrevista por telefone.
Pesquisas eleitorais mostram que a economia está de fato orientando os votos. Perguntados sobre quais devem ser as principais prioridades do próximo presidente, 49% citam inflação, desemprego, fome, miséria, e salário, representando 30 pontos a mais em comparação com as últimas eleições, de acordo com uma pesquisa Ipespe.
Nesse cenário, Lula investe na heterogeneidade dos eleitores evangélicos que priorizam outros aspectos além da pauta moral para obter suporte do eleitorado. O advogado e ativista Rarikan Heven, de 31 anos, um congregante da Igreja Hillsong, é um desses eleitores. Apoiador do Lula, ele acredita que a religião influencia o voto, mas que as propostas dos candidatos e o que ele defende são ainda mais importantes. Contou à GV por Whatsapp: “Religião acaba tendo uma influência sobre os valores que a igreja defende. Para mim, esses valores são sobre ajudar aos outros, solidariedade, lutar pela igualdade social, juntamente com um projeto nacional que os dê suporte.”
As pesquisas indicam um cenário em que os eleitores evangélicos estão indo contra o fluxo eleitoral, com a maioria dos eleitores ainda apoiando o atual governo. “Se tivermos um segundo turno, será por causa do voto evangélico em Bolsonaro que o garantirá”, disse Do Valle.
Lacerda também destaca a importância dos católicos na decisão eleitoral. “Se a eleição fosse composta apenas por evangélicos, Bolsonaro provavelmente ganharia no primeiro turno. Mas se não fossem os católicos, Lula não estaria na frente das eleições como está hoje”.
A última pesquisa Datafolha, de 1º de outubro, mostra Lula com 50% dos votos válidos, contra 36% para Bolsonaro. No último debate na TV antes do dia das eleições, candidatos se referiram à religião, mas como o movimento “Judeus pela democracia” observou:
Tradução de Letícia Dutra.
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