Casos de amor e cadeia: gays e travestis como “destruidoras de famílias”

Com um absurdo tom moralizante, as matérias dos anos 1960 e 70 conclamavam a indignação popular contra quem ousava assumir um amor LGBT

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O conceito do pontilhado nas artes dessa série aborda o distanciamento necessário para que possamos olhar o passado com mais nitidez. Ao se afastar, é possível observar a imagem com mais clareza. (Arte: Felipe Dario).

Esta reportagem faz parte da série “Antes do Orgulho”, que aborda a complexa representação LGBTQIA+ nos jornais do Recife. Acompanhe as outras reportagens da série:

+ Antes do orgulho: a complexa representação LGBTQIA+ nos jornais do Recife
+ “Anormais” – a homofobia na crônica policial do Recife

Entre os muitos casos envolvendo homossexuais noticiados no Diario de Pernambuco nos anos 1960 e 1970, alguns chamam a atenção por revelarem situações dramáticas banais, mas que acabaram indo parar na delegacia de polícia com gays e travestis  aparecendo  como o pivô ou o motivo para o sofrimento de alguém.  É como se os redatores, com essas matérias, solicitassem ao leitor a adesão à sua própria indagação e indignação de como homens cis poderiam alterar o rumo de suas vidas por causa de uma travesti ou outro homem. 

Nesse tipo de relato em especial, percebemos a construção de uma narrativa em tom melodramático, sobrando para as travestis e para os gays, mesmo quando isso não é explicitado, o fardo da culpa. Percebemos ainda que muitas dessas matérias, por conta do estilo da escrita, foram feitas pelo mesmo jornalista, pois era comum a presença de repórteres setorizados nas redações da época. 

A matéria “Marido abandona a sua esposa para viver com boneca” é emblemática nesse sentido. O caso aconteceu no bairro de Santo Amaro, no Centro, e segundo o redator, os policiais do distrito não sabiam como resolvê-lo. Desde a abertura da matéria, no entanto, nota-se que o repórter está do lado da mulher abandonada cujo marido, um operário, deixou ela e “dois filhinhos” para “viver amasiado com o homossexual conhecido como Jorge Trelosa”.   

Dando continuidade à narração do caso, a matéria diz que “antes, o casal vivia em franca harmonia e o modesto lar parecia um recanto do Paraíso. Mas, depois que Pedro virou a cabeça e apaixonou-se por ‘Jorge Trelosa’, dona M.N. passou a sofrer toda espécie de maltratos e até mesmo fome com os filhinhos porque o marido tem negado a alimentação em casa”. Por conta disso, a mulher prestou queixa, sendo Pedro e Jorge intimados a comparecerem ao posto policial. 

Não duvidamos que o sofrimento da esposa abandonada fosse sincero, mas o repórter em nenhum momento demonstra ter escutado a versão do acusado para dar uma visão mais equilibrada do fato. Limitou-se a descrever o depoimento do operário que compareceu com seu amante no posto policial conforme solicitado. Pedro declarou que o caso deveria ser resolvido na Vara de Família. Pela firmeza das respostas, sobrou para o redator apenas a opção de reproduzir a fala de Pedro: “eu sou capaz de me desquitar porque eu não quero mais minha esposa e não troco minha ‘Jorge Trelosa’ por mulher nenhuma do mundo. Estou muito satisfeito com ela”.  

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Nestas matérias também sobressai o tom moralizante dos depoimentos das ditas autoridades policiais em que a discriminação é disfarçada por um discurso apaziguador e acolhedor e encampado pelo redator da notícia. Essa situação é muito comum nas ocorrências em que um homem cis envolve-se com uma mulher e depois descobre que se trata de uma pessoa trans como aconteceu com o zelador do Edificio Transatlântico, em Boa Viagem. G.S.S. iniciou um namoro com a doméstica E.M.L. e depois a espancou (ou “deu-lhes uns sopapos” como conta o repórter) ao constatar que ela era do sexo masculino. 

Mais uma vez um conflito amoroso pessoal virou caso de polícia e, segundo o repórter, causando admiração ao delegado Edvaldo Pacífico, pois os documentos da acusada, tirados no Rio de Janeiro, inclusive certidão de nascimento e carteira de identidade, atestavam-na como mulher. Diz a matéria que o policial tentou convencer a moça a aceitar sua condição de homem ao que ela reagiu afirmando “sou muito mulher e vou continuar assim”. Ela foi liberada, mas perdeu o emprego. G. teria ficado desolado, mas nas palavras do repórter “ele foi severamente advertido pelo Sr. Edvaldo Pacífico no sentido de escolher melhor suas namoradas”.