INTERCÂMBIO COM OS MORTOS
Novo filme do cultuado Julio Medem é uma jornada mística pelas vidas passadas de uma pintora atormentada
Por Eduardo Carli de Moraes
CAÓTICA ANA
Júlio Medem
[Caotica Ana, Espanha, 2008]
Numa das frases mais clássicas do cinema na década de 90, o garotinho de O Sexto Sentido revelava ao mundo seu espantoso dom: “I see dead people!” É um cena que se entranha na memória e não sai mais. Não foi a primeira vez que um filme hollywoodiano de grande porte encantou as multidões com um enredo que flertava com o sobrenatural e os fenômenos paranormais, claro. Outros exemplos de extremo sucesso do tema seriam Ghost – Do Outro Lado Da Vida, reprisado à saturação pela Globo. O fato é que poucos resistem a uma boa história de fantasmas e mortos perambulando por aí!
Caótica Ana é mais um filme que irá abordar uma temática semelhante, desta vez através da história de uma jovem que, através de transes hipnóticos, consegue “acesso” a suas vidas passadas, re-experimentando na pele as mortes trágicas e violentas que sofreu nos últimos dois mil anos. Por ser uma obra com um saborzinho mais de item cult que de blockbuster, acaba tendo semelhanças com filmes como Solaris (de Andrei Tarkovski, refilmado depois por Steven Soderbegh) ou The Dead Zone (de David Cronenberg), que tratam de modo refinado temas altamente misteriosos e paranormais.
O cultuado cineasta Julio Medem, um dos mais talentosos da atual geração do cinema espanhol, pode não ser tão famoso quanto Almodóvar, mas possui um séqüito de admiradores bastante fiel. No Brasil, seus dois filmes mais conhecidos e vistos são Lúcia e o Sexo, de 2001, e Os Amantes do Círculo Polar, de 1998. Este seu novo filme aparece 6 anos depois de Lúcia…, sua última obra-de-ficção (neste meio-tempo ele fez um documentário sobre a questão do país Basco tendo tido o dissabor de ser acusado por alguns de apoiar as guerrilhas). Caótica Ana é dedicado à jovem irmã de Julio Medem, a pintora Ana Medem, recentemente falecida (aos 20 anos de idade) e cujos quadros decoram várias cenas deste instigante, bagunçado e prá-lá-de-ambicioso novo projeto do diretor.
Virtuose e superstição
Se Medem fosse um músico, certamente estaria numa banda de rock progressivo e não numa de punk-rock de três power-chords. Pois seus filmes sempre soam sofisticados, refinados, complexos, conduzidos por mão de mestre por alguém que é virtuose em sua arte e faz questão de ostentar seus talentos em longos “solos”. Caótica Ana não é diferente: o requinte visual e o preciosismo técnico são exemplares. Nossas retinas saem do cinema satisfeitas com um filme que vem recheado de cenas e tomadas que são puro eye-candy. Mas, se a obra é formalmente impecável e visualmente exuberante, o mesmo não se pode dizer com tanta certeza sobre o conteúdo e o enredo.
Que o roteiro de Medem está fervilhando de idéias e referências, não há dúvida. O diretor botou no liquidificador espiritualismo, fenômenos paranormais, técnicas de hipnose e regressão, arquétipos junguianos, o complexo de Édipo, a Guerra do Iraque, História Africana moderna e muito mais… Rolam até referências à cultura rave de Ibiza (o filme já começa com uma bela simulação de uma viagem de ecstasy) e aos artistas neo-hippies madrilenhos! Ambição pouca é bobagem! O primeiro dos problemas, como já se vê por essa descrição de temas que soam um tanto desconexos, é que a obra acaba ficando até mais caótica do que sua protagonista.
O filme começa muito bem, prometendo uma história aventuresca sobre a linda e talentosa Ana (Manuela Vallès), uma linda loirinha bicho-grilo que vende seus quadros em feirinhas hippie e adora boiar nua nas águas de Ibiza. Esta jovem pintora que dá nome ao filme, após ser descoberta por uma mecenas caça-talentos (a insossa Charlotte Rampling), muda-sa para Madrid para morar numa louca república de artistas. “Aqui me sinto como uma índia que acabou de sair de sua aldeia”, escreve ela para o pai, enquanto Medem brinca de filmar cenas à la O Albergue Espanhol.
Saindo do mundinho fechado e super-protegido onde antes tinha existido (simbolizado muito bem pela casa onde ela morava antes: uma bat-caverna talhada na montanha, com portas desenhadas nas paredes e que não se abrem para nada…), Ana cai no mundo. Recebe aulas de orientação sexual de uma nova amiga. Participa de exposições de arte coletivas, peças de teatro e outros happenings típicos de jovens artistas cultos e provocativos. E, por fim, acaba apaixonando-se por um imigrante africano. A personalidade de Ana, como sugere o título do filme, vai mostrando-se de fato caótica – e isso vai lentamente emergindo na tela conforme ela tem estranhos ataques neuróticos nos momentos mais inesperados.
Mas o filme de Medem, que começa tão bem, prometendo um profundo estudo de personalidade dessa jovem pintora tão fascinante e atormentada, logo se perde num enredo rocambolesco demais para um filme com tamanha pretensão a ser tido como uma obra-de-arte. E talvez aí esteja o grande problema do filme: extremamente ambicioso, mas que se perde em seu próprio labirinto, como que esmagado pelo próprio peso.
O grande problema é que o enredo a certo ponto degringola para um esoterismo exagerado – sem falar no grau de inverossimilhança excessiva da história toda. Esta mesma premissa – “garota hipnotizada re-experencia mortes violentas que sofreu em vidas passadas” – poderia facilmente virar motivo de piada e alvo de tomatadas num filme de terror B, que os críticos de cinema iriam massacrar sem dó. O mesmo enredo, embrulhado no papel brilhante de tamanho virtuosismo visual e técnico, acaba adquirindo um ar de coisa respeitável.
Mas não nos deixemos enganar, porém, por essa afetação de artisticidade e refinamento – e não confundamos isso com profundidade. Pois em Caótica Ana Medem cometeu uma atrocidade parecida com a de Darren Aronofsky em a A Fonte da Vida: nos dois casos, um diretor promissor e original acaba despencando no excesso tanto de pirotecnia visual gratuita quanto de misticismo cheio de fogos-de-artifício.
Caótica Ana é um filme capaz de agradar principalmente senhoras supersticiosas e meio hippongas, que adoram queimar incensos, ter estatuazinhas de gnomos-da-sorte e ouvir CDs de “relaxamento e meditação”. Dá a impressão de ser o resultado do tipo de confusão em que cairia um bom cineasta se lesse demais Allan Kardec ou levasse a sério demais doutrinas implausíveis sobre espiritismo, reencarnação e médiuns. Em vários momentos, o filme acaba soando como o equivalente cinematográfico de uma música new age – o que neste caso, não tem intenção de ser nada lisonjeira.
Pior ainda é o fato do filme afirmar categoricamente que aquelas experiências da protagonista são reais, quase milagrosas, impondo uma visão religiosa ultra-suspeita ao espectador. Eu não teria objeções a fazer ao filme se ele, ao tratar dessa questão da reencarnação e da possibilidade de “acessar” memórias de vidas anteriores, deixasse aberta a porta da dúvida. Quando Ana é hipnotizada e narra suas supostas existências antigas, o espectador poderia se perguntar: mas será que ela não está imaginando tudo? Será que ela não está criando um enredo totalmente falso só para seguir as ordens do hipnotista? O que existe de seguro para nos garantir que ela não está alucinando ou se auto-ludibriando?
Mas Medem jamais deixa aberta sequer a possibilidade de que Ana pudesse estar sonhando, imaginando, delirando. Ana está de fato revivendo memórias de suas vidas passadas e nunca isso é posto em questão, como prova o fato dela desembestar a falar árabe ou idiomas indígenas mortos quando está em transe, o que é o mesmo que afirmar que ela, no fundo do inconsciente, pode “acessar” memórias de sua alma ancestral.
Por isso Caótica Ana é um filme todo impregnado de misticismo e de credulidade, um pretensioso enredo que parece ter sido borrifado com doses excessivas de Jung, Kardec e parapsicologia, mas que tem, para o meu paladar, um suspeito gosto de charlatanismo espiritual. É o tipo de obra que agradará principalmente aos crédulos. Aqueles que, como eu, tem uma queda para o ceticismo, só podem lamentar: que excelente filme ele poderia ter sido se somente algumas sementes de dúvida tivessem sido plantadas neste terreno!…
Pois Caótica Ana fica longe de se transformar numa obra que fomente um interessante debate entre fé e ciência, como poderia ter sido se aproveitasse melhor o contraste entre a moça, que crê em reencarnação e regressão hipnótica a vidas antigas, e seu namorado Said, que estuda biologia e parece ter um “temperamento científico”. Richard Dawkins, se resenhasse o filme de Medem, provavelmente desceria a lenha. E, neste caso, me alinho à Frente Militante Anti-Superstição, que o biólogo britânico vem liderando nestes últimos anos, e digo: Medem, com este filme, acaba por impor ao espectador, através de um enredo inverossímil, uma doutrina espiritualista que tem o cheiro da superstição mais rala. Taquemos livros de Nieztsche nele!
NOTA: 6,5
[+] MEDEM CRIA MULHER ARQUETÍPICA DO SÉCULO 21
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