Canção ao Longe
Clarissa Campolina
Brasil, 2022, 1h15. Distribuição: Vitrine Filmes
Com Mônica Maria e Carlos Francisco
Em cartaz nos cinemas
As transformações, questionamentos e rupturas que inauguram a vida adulta chegam sem pedir licença e, num piscar de olhos, vêm para subverter o significado do ambiente que nos ronda, das pessoas que nos cercam e de nossa própria identidade. Em Canção ao Longe, drama ficcional que marca a estreia de Clarissa Campolina na direção solo, essas inquietações servem de base para uma narrativa introspectiva e sentimental sobre esse rito de passagem.
Na trama, seguimos os passos da jovem arquiteta Jimena, interpretada pela atriz Mônica Maria, que parte em busca do seu próprio lugar no mundo. E, se por um lado essa busca ganha conotação figurada, como uma representação simbólica da jornada para compreender sua própria individualidade, simultaneamente alcança seu sentido literal, já que esse processo de amadurecimento representa também a partida do seio familiar para encontrar um cantinho para chamar de seu.
Sempre muito silenciosa e compenetrada, com um olhar melancólico, a personagem comunica grande parte de suas inquietações e divagações através de cartas que troca com o pai, uma figura enigmática para ela e ausente durante toda sua vida. As correspondências narradas – seja por ela ou pelo pai Arturo – contrastam com o silêncio da casa onde a jovem mora com a mãe e a avó. E, assim, diante do vazio em seu próprio lar, Jimena busca preencher esse espaço com as palavras compartilhadas com o genitor.
Através do olhar da jovem, Canção ao Longe explora como questões de classe, gênero e raça podem moldar nossa própria subjetividade e, neste caso, são as duas últimas categorias que se sobressaem. Por ser a única mulher negra em uma família branca e abastada, a questão racial é parte intrínseca do sentimento de deslocamento que Jimena carrega em relação à sua família, enquanto também precisa lidar desde a mais tenra idade com a ausência da figura paterna, algo central para a construção da sua identidade.
O motivo exato da ausência desse pai, porém, nunca é revelado. Embora a dimensão de gênero confira a Arturo o privilégio de se afastar da responsabilidade de criar a filha e conviver com ela, nem tudo se resume de forma tão simplista. O roteiro, assinado por Campolina, Caetano Gotardo e Sara Pinheiro, entrelaça as diferentes dimensões da qual dispõe de maneira complexa, fornecendo apenas pistas sobre a razão por trás da ausência: um homem negro e imigrante que provavelmente nunca encontrou espaço ou aceitação nesse ambiente familiar branco.
Simultaneamente, o filme nos conduz por um passeio pela cidade de Belo Horizonte, revelando sua paisagem urbana através das imponentes edificações. Dessa forma, o que há de mais abstrato e nebuloso no próprio movimento interno de Jimena parece encontrar algo de concreto nas obras e construções, que também ditam a passagem do tempo para ela. Mesmo carregada de sensibilidade, porém, a trama parece nunca de fato submergir o que pretende quando se propõe a mergulhar tão fundo, tornando-se um passeio reconfortante pelo vazio existencial que nos habita.
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