mestra joana
Mestra Joana da Silva, 74 anos, líder do Samba do Coco Cachoeira da Onça - Joana é neta dos primeiros brincantes e atualmente é uma espécie de “representante oficial” dessa tradição, já que é a única que permaneceu no território onde nasceram seus antepassados. (Foto: Isabela Britto/Divulgação)

Cachoeira da Onça: um berço do Coco de Roda nos Sertões

A tradição oral garantiu a preservação do coco de roda da região de Quitimbu, no sertão de Pernambuco. Mas representantes dessa tradição ainda sofrem para provar que essa cultura existe, pois faltam materialidade dos folguedos para além da memória coletiva

OG barra interior 01

No interior de Pernambuco, mais especificamente entre as divisas de Custódia (Moxotó), Afogados da Ingazeira e Carnaíba (ambas no Sertão do Pajeú), um intenso movimento de Coco de Roda resiste ao tempo e ao apagamento ao qual estão em perigo os folguedos da cultura popular. 

É dessa região que nasceram os pioneiros da Família Calixto, que hoje fazem história em Arcoverde e transformaram a cidade na Capital do Coco. É de lá, também, que vieram os integrantes do Coco Negras e Negros do Leitão, hoje Patrimônio Vivo de Pernambuco; além dos grupos Coco das Abelhas e Coco do Travessão, ambos de Carnaíba. A região possui, ainda, dois grupos mirins, em Carnaíba e Custódia respectivamente, com formação intermitente.

Mas são os integrantes do Samba de Coco Cachoeira da Onça, próximos de Quitimbu (distrito de Custódia), que mais chamam a atenção, por ainda residirem no lugar de onde saíram todos os outros grupos: são, por tanto,  “guardiões” da tradição do Coco que persiste em germinar nessa localização. 

Eles são liderados por Mestra Joana, 74 anos, uma mulher negra e quilombola, pessoa de um jeito tímido, mas voz potente. Ela é uma das poucas Mestras do Coco no interior de Pernambuco. Ao subir ao palco do Festival Lula Calixto (Arcoverde), em agosto de 2024, Joana presenciou uma plateia dispersa concentrar-se nela em coisa de minutos, graças ao seu jeito de cantar firme e potente.

A repercussão após a apresentação foi instantânea, com as pessoas querendo saber dos discos do grupo, onde encontrá-los, como segui-los. 

O ano de 2024 foi o primeiro ano de carreira artística oficial para Joana, mas ela brinca com Coco desde que se entende por gente. “O Coco é nossa tradição. Vem dos antigos, a gente brinca sempre nas festas de fogueira (São João) e tinha muito coquista bom, meus tios Luiz Gonçalo, Zé João, João Gonçalo…”, relembra. 

Joana ainda explica que não existia grupo como hoje: os parentes se encontravam e revezavam a brincadeira, e apesar da história não citar as coquistas mulheres, Joana relembra que suas tias Messias Gonçalo e Joana Gonçalo também eram grandes coquistas no improviso e desafio (quando um cantador desafia o outro a entregar rimas criativas): “Mas nós mulheres ficávamos na parte da cozinha. O Coco mesmo a gente só sambava, e essas cantadoras só entravam pra cantar depois que os homens já estavam cansados, mas o Coco durava a madrugada toda, tinha espaço para todos”, destaca.

Das vivências dessa época, Joana guardou canções e versos e acabou transformando-os num jeito de cantar que naturalmente a levou ao posto de Mestra do Coco na região: todos entre o Moxotó e o Pajeú conhecem sua potência e, pela primeira vez, ela e o grupo chegaram a concorrer ao Patrimônio Vivo de Pernambuco, onde ficou atestado pela comissão diversos elogios a sua originalidade mas, infelizmente, também atestou-se a falta de comprovação de certas atividades – o que para um grupo quilombola é uma constante, já que nem acesso a fotografia eles tinham até pouco tempo atrás.

coco333
Família Calixto mantém e populariza a cultura popular do coco no Sertão. (Divulgação).

“A gente tem uma origem muito simples. Foram as políticas públicas das últimas décadas que deram alguma dignidade ao nosso povo, como a cisterna, o Bolsa Família, e agora esses investimentos em cultura, mas antes não tínhamos as condições que temos hoje. Até para ter uma foto era muito difícil”, explica Josefa Maria da Silva, conhecida como Nenega, sobrinha de Joana e uma das poucas da região que formou-se e hoje atua na área da Educação.

Através dos estudos de raça promovidos pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), onde Nenega estuda, ela encaixa o grupo em diversas atividades relacionadas à valorização quilombola: “Não temos trabalho nenhum em provar a quem nos vê pessoalmente sobre o nosso talento: é só cantar e sambar que o povo se encanta”, reflete.

Foto de Leo B
O vilarejo de Quitimbu já chegou a ser sede de Alagoa de Baixo, atual Sertânia. Sua formação é anterior à criação do município e guarda forte histórico cultural com as comunidades quilombolas de Custódia e também dos municípios vizinhos. (Foto: Murilo Cavalcanti/Cortesia)

O encanto, aliás, é constante onde ela vai. Durante o Festival Lula Calixto, por exemplo, a educadora física Aline Longui ficou fascinada por ela: “Quando vi Mestra Joana no palco em Arcoverde, me acessou uma força matriarcal, pelo timbre de sua voz… me remeteu ao canto das lavadeiras, sua peculiaridade na maneira de tocar o ganzá,  e a simplicidade da potência da mulher nordestina, na força da presença,  na confiança de subir no palco e mostrar o que é,  o que faz… foi poético, foi forte.. foi inspiradora”, relembra. 

A mesma admiração ainda ocorreu no Festival Xerém Cultural (Afogados da Ingazeira), em julho de 2024, quando uma grande roda de Coco logo se formou e só se dispersou quando a mestra deu seu adeus. “A gente percebe a importância da participação dela nesse lugar de não apenas empoderamento, mas literalmente poder, porque nas rodas de coco tem mais mulheres sambando do que no microfone, cantando seus versos. Achei muito potente a Mestra Joana liderar. Sem dúvida é um diferencial e é muito empoderador, representativo”, reflete Lúciio Vinicius, organizador do Festival.

Mas o palco mais emblemático foi o Festival de Inverno de Garanhuns (FIG), onde o grupo abriu a tarde de apresentações apenas com curiosos e encerrou a participação com uma grande roda e muitos aplausos. Nos bastidores, havia uma fila de pessoas procurando especialmente pela mestra.

“Eu não sei o que as pessoas veem em mim não, povo besta, eu sou normal”, sentencia a Mestra, às gargalhadas, enquanto nos preparamos para  essa entrevista. De três encontros para produção do material, apenas em novembro Joana se mostrou mais íntima, e por isso mesmo, mais confortável para dividir conosco as histórias de resiliência e sabedoria popular que norteiam a existência de sua comunidade e seu grupo de Coco de Roda.

“A gente brinca de Coco desde sempre aqui nesse barro vermelho, tudinho por aqui [Joana aponta para o terreiro de sua casa]. A gente faz o Coco que nem sente, e eu estou à frente né? Vocês dizem que sou Mestra, então tá dito. Mas eu sou só uma filha de Deus que não sei de nada”, sentencia. 

Não enxergar-se como artista, aliás, faz parte da mentalidade simples desse povo: o irmão de Joana é ninguém menos que Inácio Pedro da Silva, 78 anos, Patrimônio Vivo de Pernambuco pelo Coco de Roda de Afogados da Ingazeira. Ele também não se sente Mestre do Coco: “são vocês que dizem, eu agradeço”, brinca. 

coco
Márcio (E), Joana ao centro e Inácio Pedro (D) durante o lançamento do Comitê de Cultura em PE em Vicência, setembro de 2024. (Foto: Leo Lemos/Divulgação).

Joana, Inácio, os Calixto e o distrito de Quitimbu compõem um complexo emaranhado de acontecimentos da cultura popular que legitimam a zona rural de Quitimbu, especialmente suas 17 comunidades quilombolas, como esse lugar de berço para o Samba de Coco no Sertão: nas escolas da região, o Coco é ensinado desde cedo, inclusive com grupos mirins; pelas ruas, os cabelos crespos são assumidos e volumosos, mostrando que há consciência e valorização do ser negro; nas festividades, todos entram na roda com sorriso largo no rosto. O Coco contagia.

Histórias quilombolas e sobre resistência

Na brincadeira com Joana estão seus filhos: Suely (49 anos), Socorro (51) e Márcio (39), todos de sobrenome Silva. Márcio virou uma espécie de representante do grupo: ele lidera a logística de viagens com sua Chevrolet D20 vermelha que trafega firme pelas difíceis estradas da zona rural de Quitimbu até a Sede de Custódia ou Afogados da Ingazeira. 

Completam o time as netas Kaline (28) e Kaliane (26), filhas de Socorro; e os familiares e amigos Josefa Maria (39), Jênecy (26), Suely (49), Antônio (62), Marília (26), Ariel (15), José Leandro (39) e Luciélio (15), todos também de sobrenome Silva. Por fim, Mestre Pimenta, 76 anos, ou José Herculano, é a dupla de Joana nas sambadas e um exímio embolador.

A tradição de brincar o Coco em família até hoje reforça o quão intenso foi internalizada a herança histórica do folguedo para a comunidade: nela todos têm um grau de parentesco e todos sabem quem são os antepassados, porque já ouviram falar das histórias compartilhadas. 

Os relatos apontam Antônio Gonçalo e Joana Maria da Conceição como os antepassados mais distantes que se tem notícia, mas não se sabe se ex-escravos ou já libertos. Deles, descendem uma leva de brincantes que incluíam Joaquim Gonçalo, Messias e Joana Gonçalo (tio avô e tias avós de Joana, respectivamente). 

coco 2
O grupo lançou um EP intitulado “No Terreiro de Mestra Joana”, que está disponível em todas as plataformas musicais. (Foto: Leo Lemos/Divulgação).

 Sem contar Pedro e João Gonçalo que não eram coquistas, mas  criaram uma geração de filhos exímios na brincadeira. Os filhos de João são Zé João (que viveu no começo do Século XX), Inácia Gonçalo, Josefa Gonçalo, Sebastião Gonçalo e Manoel João, além de Azinaldo Gonçalo, que foi mestre do Negras e Negros do Leitão com Inácio Pedro até meados dos anos 2000. 

Já por parte de Pedro Gonçalo vieram, entre vários filhos, os irmãos Joana Maria e Inácio Pedro, hoje dois importantes mestres do Coco.

Neste ponto, é importante traçar o contexto histórico da região de Quitimbu: a ocupação portuguesa dessa área, até então originária, se dá a partir do século XVIII, principalmente através da chegada de criadores de gado via Floresta, Ingazeira e Flores – nos três casos, através de bacias hidrográficas ligadas ao à época e, nas quais, Bandeirantes da Bahia passaram a invadir os Sertões para criação de gado, a partir de acordos que envolviam a Igreja Católica e a Coroa Portuguesa. 

Inclusive é na região da Ingazeira, no Pajeú, que há o impressionante relato da “Guerra dos Bárbaros”, movimento de resistência dos povos originários que inclusive consta em documentos oficiais enviados a Portugual à época.

 No Moxotó, tal e qual no Pajeú, também havia povos tradicionais e, no exemplo de Quitimbu, a região apontada como sagrada para esses povos é era a Serra Negra, atual Serra do Sabá (ou Serra das Antenas, próximo às regiões quilombolas do município). 

No caso da ocupação da região onde hoje  fica Quitimbu, o fazendeiro Luiz Tenório de Melo Dodô é apontado pela história “oficial” como o criador de tudo. Mas, como bem diz a publicação Sertão Quilombola, do Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF), publicada em 2008, é importante dar vazão a outras versões da história. 

A equipe do Centro visitou todos os territórios quilombolas nos Sertões nos primeiros anos da década de 2000 e documentou algumas das histórias até então apenas existentes no campo da oralidade – relatos que contradizem a “versão oficial”. 

Dentre as histórias, as mais chocantes dizem respeito aos golpes aplicados pela família Tenório de Melo com relação aos meeiros, quando trabalhadores cultivavam em terras alheias e, como contrapartida, teriam que dar a metade da produção ao dono da terra. 

Ou, pior, quando pessoas negras assinavam papéis sem saber do que se tratava e acabavam perdendo seus pequenos terrenos adquiridos ao longo de uma vida. Não à toa, na contemporaneidade, os terrenos da maioria dos moradores da região não passam de 30 hectares, conforme aponta outro estudo importante de Quitimbu, intitulado Quilombo de Buenos Aires: caracterização histórica, econômica, ambiental e sociocultural, de Geraldo Barboza de Oliveira Junior. 

coco22
Festival Lula Calixto em Arcoverde. (Divulgação).

Esses relatos estão explícitos no livro Ser Quilombola e são reforçados pelo professor Maurício de Siqueira Silva que estuda os movimentos quilombolas do Moxotó e Pajeú. Para ele, o traço mais relevante da história dessa localidade é que muitos dos negros contemporâneos são descendentes diretos do quilombo União de Palmares. 

“Há diversos relatos orais, muitos deles registrados pela professora Bernadete Lopes (especialista em pesquisas quilombolas natural do Pajeú), que comprovam que o fluxo migratório de muitas matriarcas e patriarcas aqui da região se inicia em União dos Palmares. De lá alguns se acomodam em Castainho (atualmente Garanhuns) e descem para cá. Uma das primeiras negras a chegar em Quitimbu teria sido Mãe Lindu, e possivelmente ela é tia-avó de Mestra Joana e Mestre Inácio”, afirma. 

 Siqueira ainda reforça que a região de onde nasceram os Calixto, Sítio Estreito, hoje  chamada de Sítio Severo, tem  ligação cultural com Quitimbu.  A Matriarca dos Calixto, dona Lourdes, porém, afirma  que não se lembra de ter vivido o Coco de Roda na época de Quitimbu, apesar dela frequentar as festas religiosas. 

Já Mestre Inácio Pedro e Miguel Mulato, alguns dos mais velhos da região, apontam que possivelmente eles tiveram contato sim, porque algumas das festas religiosas tinham puxada de samba. Josefa Maria da Silva, a Nenega, que é sobrinha tanto de Mestra Joana quanto de dona Lourdes, acredita que ela também deva ter tido contato, apesar do desenvolvimento artístico deles no Coco, de fato, ter se dado mais fortemete em Arcoverde. 

Festas de fogueira e aniversário de Mestra Joana

Voltando a Joana e ao Samba de Coco Cachoeira da Onça,  a brincadeira do folguedo existe desde sempre ao longo da vida de seus integrantes, mas, enquanto grupo artístico organizado, é recente sua formação. Atualmente a comunidade samba nos fins de semana festivos, samba no São João e em pequenos momentos relacionados à cultura negra, com o mês de novembro. 

A sambada do São João é a mais importante, porque dia 23/6 é também aniversário de Mestra Joana. “É uma festa bonita, junta gente de todas as redondezas. É bom demais”, descreve Joana, com um sorriso largo. 

Na edição de 2024, a festa entrou pela manhã e foi encerrada com a curiosa brincadeira do boi, onde todos os participantes ficam numa roda, formando uma corrente humana, enquanto os sambadores cantam uma canção específica sobre o boi, com direito a improvisos; uma única pessoa finge ser o animal e tenta passar da corrente humana: quem deixar o boi passar, paga uma prenda à comunidade. 

A celebração é garantia de sorrisos e encerra com leveza a celebração junina na comunidade, historicamente chamada por eles de “festa da fogueira”.

Vídeo da brincadeira do boi em 2023.

Até os anos 1990, com a situação econômica do Nordeste mais fragilizada, o Coco de Roda era também intimamente ligado ao laboral, fosse na construção de casas de taipa ou nivelamento de terreiros, ou nas casas de farinha e fabricação de derivados da mandioca : lá o Coco era solução para aliviar a exaustão.

Hoje, praticamente não existe nivelamento de terreiros, e o trabalho nas casas de farinha são motorizados. Mas o Coco de Roda entrou para esse lugar artístico e se reinventa: enquanto os integrantes mais velhos do grupo nem sempre se enxergaram como artistas, os mais jovens não só se enxergam como vislumbram um futuro melhor para o grupo, como Marília Andressa da Silva, 27 anos, que está compondo e criando novos sambas, como “Você Não Sabe o Que Pode Fazer o Nego”, lançada com exclusividade no mês da Consciência Negra de 2024.

“Um dia seremos nós as mestras e mestres do Coco, os mais jovens de hoje, então é importante a gente ir criando novas coisas e experimentando novos arranjos e jeitos de tocar”, destaca Andressa. “Antes tudo aquilo era apenas uma grande brincadeira, depois foi ficando sério”, reforça Márcio da Silva, filho de Joana e afilhado de Mestre Manoel Miguel, do Coco Negras e Negros do Leitão. 

Foi Márcio que, em 2023, iniciou uma busca por produção local que pudesse colocar o grupo no patamar de outros grandes grupos como os de Arcoverde. Com isso, apenas em 2024 o grupo acessou palcos importantes como Xerém Cultural (Afogados da Ingazeira), FIG (Garanhuns), Lula Calixto (Arcoverde) e Apresentação do Comitê de Cultura PE (Vicência). 

O grupo ainda lançou um EP, intitulado “No Terreiro de Mestra Joana”, que está disponível em todas as plataformas musicais.

Do esforço do grupo em manter a tradição do Coco e o respeito aos Mestres, especialmente a valorização de Joana e todo seu conhecimento, sinais do fortalecimento da cultura negra aparecem por todos os lados, como a comunidade inteira entrar na roda de Coco nos festejos, especialmente as crianças que brincam com naturalidade; ou as mulheres que abandonaram os alisantes para voltar aos cabelos crespos e naturais: tudo sinaliza um claro orgulho da história e do que são. 

Assim, os integrantes sinalizam que especialmente a tradição do Samba de Coco nesse berço do Coco, que é Quitimbu, estará preservada e garantida às próximas gerações. Vida longa e frutífera ao jeito original e único de brincar o Coco que só a região de Quitimbu e suas comunidades quilombolas produz. 

Leia mais reportagens