A quadrinista cearense Brendda Maria lança sua nova HQ Apartamento 501 em formato digital no Twitter e no Instagram. Novos capítulos serão publicados todas as quartas e sábados.
A história se passa em Fortaleza e acompanha um grupo de amigos que se reúnem no apartamento que dá título ao quadrinho. Este é o primeiro webcomic de Brendda, que é autora da HQ Cais do Porto (2019) e Manual de Sobrevivência à Vida Adulta (2017). Ela também assinou uma história para a revista Plaf #1 (2017).
Foi a saudade do convívio com sua turma que inspirou a autora a transformar as histórias de seu cotidiano em HQ: “durante a pandemia eu passei um tempo fora de Fortaleza e foram ao todo quatro meses sem vê-los”, diz. “Eu decidi que eu ia colocar pra frente uma história sobre os meus amigos e o que a amizade representava na vida das pessoas”. A capital cearense também possui um peso importante na trama. “Passei a entender que Fortaleza é personagem das minhas histórias. A forma como as pessoas se comportam, a forma como os prédios são construídos, como as nossas gírias são faladas”, diz Brendda. “Tudo tem um valor muito grande”.
A obra traz uma reflexão sobre amizade, mas também sobre como o isolamento e a distância nos afetaram nesse momento de pandemia. Conhecida por utilizar as cores como parte importante da construção da narrativa, a obra é a primeira experiência de Brennda nos quadrinhos digitais.
A seguir, batemos um papo com Brendda sobre este seu novo trabalho, cotidiano, amizades e de como tudo vai ser melhor quando esse coronavírus passar.
Me fala um pouco das inspirações para a criação de Apartamento 501? A obra tem algo de autobiográfico?
As inspirações vieram de observar meus amigos. Durante a pandemia eu passei um tempo fora de Fortaleza e foram ao todo quatro meses sem vê-los. Estávamos vivenciando situações bem engraçadas, boas histórias – eles tocaram no lançamento de Cais do Porto. E como eu gosto muito de falar de relações humanas, comecei a observá-los, até que pensei “poxa, isso aqui rende boas histórias”. Eu também passei um tempo no interior, em Aracati, na casa da minha mãe durante a pandemia e a saudade falou um pouco mais alto. Eu decidi então que eu ia colocar pra frente uma história sobre os meus amigos e o que a amizade representava na vida das pessoas.
Eu dei uma conversada com algumas pessoas que me seguem no Twitter e Instagram e perguntei se elas tinham histórias de como os amigos tinham sido importantes na vida delas. Recebi histórias muito lindas de como as pessoas tinham mais proximidade com os amigos de que com os familiares, de como os amigos as tinham protegido e acolhido e decidi que o Apartamento 501 era uma boa história pra se escrever durante o processo de isolamento social. Nos lembra de como a relação entre amigos é importante para que a gente se sinta bem e confortável sobre quem decidimos ser.
Seus gibis anteriores abordam a relação das pessoas com a cidade de maneira bastante sensível. Enquanto nordestino, eu sempre me empolgo quando vejo narrativas que deslocam esse olhar do Sul/Sudeste pra cá. Como isso se dá no seu trabalho?
Passei a entender que Fortaleza é também personagem das minhas histórias. A forma como as pessoas se comportam, a forma como os prédios são construídos, como as nossas gírias são faladas. A forma como nós interagimos nos espaços de convivência, tudo tem um valor muito grande e eu quis resgatar isso. É muito importante para que a gente desmistifique as ideias de como são as pessoas do Ceará. Sabemos que o imaginário do nordestino e do cearense é muito pautado por um conhecimento genérico e, de certa forma, relacionado à seca. A partir do momento em que eu desloco a minha narrativa de situações que remetem ao cangaço, seca e trago pro ambiente urbano, mostro a relação das pessoas com a cidade eu acabo colaborando pra fazer com a que a visão sobre a minha cidade e o Estado mude.
O mais importante pra mim é que, a partir do momento em que eu desloco a narrativa de um grande centro urbano como São Paulo para uma cidade do Nordeste e, mais especificamente, para Fortaleza, eu tô mostrando ao público que nossas histórias são próximas a outras vivências, que o nosso Brasil é múltiplo, que nossas experiências são diversas e que precisam ser representadas. Faço questão de colocar no meu quadrinho o modo como as pessoas falam e, no caso dessa história, eu tento trazer um pouco mais do sotaque do Cariri porque um dos personagens é de Juazeiro. Quero mostrar às pessoas como enriquecemos a história quando adicionamos outros sotaques.
Outra coisa que me apego muito são às cores da cidade de Fortaleza, as estruturas arquitetônicas. Não consigo mais desvencilhar a minha narrativa do que a cidade representa pra mim.
Suas cores são lindas e tudo na HQ (traço, narrativa) nos dá uma imersão interessante. Poderia nos contar um pouco do seu processo de criação?
Cor é algo muito importante pra mim. Eu utilizo como um recurso narrativo tão importante quanto o desenho e o texto. A cor traz um quê nostálgico, um ar de imersão na história. É um processo que começou de forma intuitiva e que agora está cada vez mais consciente. Pra mim cor é o artifício para direcionamento de olhar. Antes de começar uma história eu já determino qual paleta vou trabalhar. Em Apartamento 501 eu sabia que iria trabalhar muito o azul porque é um ambiente noturno e a iluminação vai ter um peso decisivo nessa história, pois ela se passa em uma noite na qual falta energia. Por isso luz e sombra serão utilizados com muita frequência, mas não sombra no sentido chapado. Eu evito usar preto na minha narrativa, pois pra mim pesa. Ter ambientes escuros e claros e conseguir trazer esse contraste através dessa brincadeira de cores serão essenciais para que eu mexa com o sensorial do leitor.
Esta é sua primeira webcomic. Por que decidiu publicar a história na web?
Esse momento de pandemia me fez refletir muito sobre como facilitar a entrega de quadrinhos para o público. Eu testei algumas tirinhas no Instagram e observei alguns amigos que faziam webcomic, como o Max Andade e Luiza de Souza pra entender como estava sendo a dinâmica. Pensei que seria muito mais pertinente levar quadrinhos de graça pro público do que pensar uma obra grande impressa ou tentar financiamento coletivo, por conta das restrições financeiras.
Eu vejo que a internet é um território muito democrático e que a gente consegue alcançar várias camadas sociais. Isso pra mim é o mais importante. Quadrinho é um modo de levar leitura. Quando mais se deselitizar a leitura de quadrinhos, melhor pra gente que produz, pois vamos instigar a renovação de público e fazer com que as pessoas se interessem mais pelo universo dos quadrinhos.
Esse processo de pandemia e isolamento social está me fazendo reavaliar várias questões: minha presença no meio digital como artista, minhas conexões com outros quadrinistas, a forma como a gente estava levando o mercado e como estávamos dependendo muito das grandes feiras (FIQ, CCXP e Bienal).
O processo de isolamento me pegou de jeito, pois eu moro sozinha (e eu odeio isso). Eu gosto de ter meu espaço, minha liberdade, mas quando me vi completamente sozinha, me bateu a ansiedade e isso me deixou muito desesperada. Como aconteceu com boa parte das outras pessoas, a angústia de não poder estar em ambientes sociais pesou. Eu passei um tempo na casa da minha mãe no interior, pois ficar sozinha no processo de isolamento não era muito bom pra minha cabeça.
Por outro lado, esse contato maior com minha família e com o interior me fez pensar muito sobre conexões. Eu tenho um grupo muito bom de amigas formado pela Talita Grass, que é editora, pela Sâmela [Hidalgo, assistente de imprensa da Devir e do projeto Norte em Quadrinhos]. pela Gabi Güllich (autor da HQ São Francisco) e a gente conversa muito sobre quadrinhos. O isolamento fez a gente se aproximar, dar suporte umas às outras, fazer coisas novas. Quando estamos em eventos é tudo tão corrido que a gente não consegue ter esses momentos de interação. Como moramos no Nordeste acaba sendo mais complexo criar vínculos. Com o fim da pandemia, quando a vacina finalmente chegar, eu vejo que a gente vai ter bolado muito mais coisas juntas.
Como tem sido esse período de pandemia pra você? O que podemos esperar de novidades daqui em diante?
Mais pra frente virão coisas muito bacanas. Estou ajudando a compor as sombras da nova HQ de Astronauta e sigo com a venda de Cais do Porto.
Esse olhar pra dentro do meu processo criativo e também graças a influências e trocas com outras pessoas no meio digital aproximou muito do que eu acredito como contadora de histórias. Temos de contar mais histórias de outras cidades, outras realidades e também sobre o cotidiano, que não é algo trivial, mas sim excepcional. A pandemia mostrou como esse cotidiano faz falta.
Acredito que vamos experimentar quadrinhos de maneiras diferentes, como já acontece no digital. O próximo ano e os próximos eventos vão fazer com que valorizemos ainda mais o que a gente está fazendo, como a gente está fazendo e pra quem a gente está fazendo.
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