“Para mim, o boy dodói – e aí, quando chamamos de ‘boy’ não é à toa – é um homem imaturo que ainda não conseguiu se entender e se resolver. Já o ‘dodói’ significa doente de patriarcado, porque entendemos que isso é uma coisa sistêmica”, assim a editora e produtora cultural Bebel Abreu define o termo que dá título à coletânea de histórias sobre comportamentos machistas idealizada por ela e pelas quadrinistas Carol Ito e Helô D’Angelo. A HQ, que está em campanha de financiamento coletivo no Catarse, tem lançamento previsto para setembro, na Bienal de Quadrinhos em Curitiba.
Em entrevista à Revista O Grito, as editoras contam que a expressão, utilizada para se referir a homens cis com atitudes machistas, sobretudo dentro das suas relações afetivas, surgiu pela primeira vez em uma conversa descontraída entre as três, quando Bebel reclamou estar “cansada de tanto boy dodói”. O comentário, claro, foi suficiente para que elas desenterrassem do fundo do baú as muitas histórias absurdas que já viveram, o que as fez despertar para o potencial de criar um quadrinho sobre o assunto.
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“Quando a gente começou a comentar desse projeto com amigas e pessoas próximas, todo mundo – que se relaciona com homem cis – falava ‘eu tenho uma história de boy dodói também'”, afirma Helô D’Angelo. Foi aí que elas perceberam que o projeto poderia (e deveria) ser amplificado e logo abriram uma chamada para que mulheres e pessoas não binárias de todo o Brasil compartilhassem suas experiências com boys dodóis. E não deu outra: mais de 300 relatos foram enviados.
“Tinha muito potencial para ser grande mesmo, aí a gente quis expandir, até para pegar histórias que não ficassem só nas nossas realidades, porque, querendo ou não, nós três somos mulheres brancas, ou lidas como brancas muitas vezes, dentro de São Paulo, numa bolha de classe média alta. Então, quisemos expandir isso para o Brasil inteiro e isso também se relaciona com o grupo de artistas que escolhemos”, explica Helô D’Angelo.
Os desabafos, que transitavam entre episódios tragicômicos e outros mais dolorosos, foram reduzidos a 11 histórias, cada uma a ser ilustrada por um artista diferente, entre mulheres e pessoas não-binárias, de várias partes do Brasil. Além de Carol Ito e Helô D’Angelo, nove quadrinistas convidades participam da coletânea. São: Ale Kalko, Bennê Oliveira, Bruna Maia, Cecilia Marins, Kael Vitorelo, Lila Cruz, Luiza Lemos, Marilia Marz e Tai. “Queríamos o maior número possível de visões diferentes”, ressalta Helô.
“A gente não tinha nada definido em termos de assunto, mas durante a seleção das histórias fomos percebendo padrões. Muita história de ghosting, muita história de homem com a autoestima inabalável, muita história ‘clássica’ de relação abusiva. Então, a gente foi embrulhando todas elas em categorias, digamos assim, e, no final, conseguimos as 11, cada uma com um tema. Óbvio que são histórias complexas, que misturam os assuntos, mas cada uma tem um foco”, detalha Carol Ito.
Além dessas 11 narrativas gráficas, outros oito relatos bons demais para passarem batidos, mas muito curtos para se tornarem capítulo do livro, foram transformados em tirinhas que serão inclusas na versão digital da HQ. Mas, enquanto o lançamento não chega, essas historinhas estão sendo publicados nas redes sociais de Helô, Carol e da editora Bebel Books, selo independente encabeçado por Bebel Abreu, responsável pela publicação impressa do título.
Tipos de boys dodói e red flags
Manipulação, ghosting, gordofobia, egocentrismo e irresponsabilidade afetiva são alguns dos temas mais recorrentes, segundo as idealizadoras. A constatação de certos padrões nocivos de comportamento foi algo tão forte, que foi inevitável elas criarem categorias de boys dodóis. Tem o Vampiro da Autoestima, que não aceita o sucesso da mulher. O Pôdi, que é o homem que não tem higiene pessoal. O Mamãe Mandou, que é o boy que faz tudo que a mãe quer. E ainda o que elas chamam de A Culpa é das Estrelas, o homem que sempre está terceirizando a responsabilidade pelos seus atos.
“Fomos percebendo que muitas histórias achávamos até que já tínhamos vivido. A gente falava ‘nossa, eu vivi uma história igual’ ou perguntava ‘foi você que me contou uma história parecida com essa?’ quando, na verdade, não. É muito louco ver que parece que foi você que escreveu, mas foi outra pessoa, sabe”, revela Carol Ito.
Essa permanente sensação de déjà-vu ao ler os desabafos que chegaram até elas só reforçou a percepção de que esses episódios eram comuns até demais. “Não é o ‘mimimi’ de uma história que aconteceu comigo e deu errado. Não é só um date ruim. É muito date ruim, entendeu. É um resumo de date ruim e de outras situações que passam para muito além disso, na verdade”, aponta Bebel Abreu.
Os relatos variam desde o homem que não divide as tarefas domésticas até o cara que quer controlar a roupa e o batom da mulher. No entanto, muito antes, começam a surgir indícios de que algo não está certo. São as chamadas “red flags” (ou, em português, bandeiras vermelhas), que dão pistas sobre os comportamentos machistas e acendem um alerta para a masculinidade tóxica.
“As pessoas que mandaram histórias, elas mesmas começam a identificar depois o red flag e falam ‘eu ignorei esse red flag‘ ou ‘eu já podia ter previsto que ia dar merda, mas eu ignorei’. Tem muito essa mea-culpa. Tudo por conta da sociedade que a gente vive, da forma como a gente é criada e da nossa autoestima cagada”, conta Carol Ito.
“A gente notou também que a barra é tão baixa, tipo os caras são tão ruins, que às vezes vem um cara que parece ser legal e mesmo ele tendo essas bandeiras vermelhas, a pessoa acaba ignorando, porque fala ‘poxa, mas o resto é tão ruim, que eu vou ignorar as bandeiras vermelhas desse aqui que é menos pior’. A gente viu muita história assim, mas chega no final essas bandeiras vermelhas se juntam num grande monstrão e o cara, na verdade, não era legal, ele só escondia melhor. Então, deu muita aflição, porque a gente viu muito isso”, lamenta Helô.
Testando os limites – do absurdo
De acordo com as três, a maioria das histórias retratam a subjugação da mulher na relação, sobretudo quando os homens esperam que sempre haja uma figura feminina à disposição para cozinhar, recolher o lixo ou até lavar as cuecas. Mas, quando questionadas sobre o relato mais absurdo dentre as histórias que entraram para a publicação, as três são unânimes. “A mais chocante é a do papel de porra.”
“Eu acho que essa é a mais nojenta do livro. Era o cara que se masturbava, limpava com papel toalha, jogava no chão do quarto e a esposa perguntava ‘mas você não vai limpar?’, aí ele falava ‘não, alguém vai limpar’, algo assim. Então, ela comprou um lixo para ele e botou ao lado da cama. Ele começou a jogar no lixo, mas ele nunca tirava o lixo, então ficava uma montanha nojenta de papel”, adianta Helô D’Angelo.
No entanto, as editoras revelam que histórias ainda piores chegaram até elas. Desabafos que envolviam violência física, casos de violência psicológica mais extremos e até transtornos psiquiátricos. Entretanto, nenhum deles foi incluído na HQ, justamente por fugir à proposta do projeto, que é oferecer um espaço de acolhimento para as vítimas dessas relações abusivas, transitando pelo riso e pelo choro, sempre com muita leveza e boas doses de ironia e humor.
“É um trabalho muito sério, embora a ideia seja ser engraçado no fim das contas”, afirma Bebel, que diz ter contado com assessoria de uma psicóloga, que tinha poder de veto sobre as histórias. “Embora a gente não seja profissional da área de saúde mental, a gente é profissional da área de comunicação que quer falar desse assunto de uma maneira construtiva. Não queremos botar o dedo na cara de ninguém. Acreditamos na potência da arte dos quadrinhos e do coletivo como ferramentas de diálogo.”
Assim, Helô D’Angelo resume o projeto como uma forma de, literalmente, “desenhar para ver se eles entendem”. “Pô, o cara entrar em contato com isso de uma forma com humor e simplificada e vendo tantas histórias absurdas, a nossa esperança é que eles leiam isso e botem a mão na consciência um pouco”, complementa. “A gente quer mudar. A gente acredita na mudança e se a gente não acreditasse a gente nem estaria fazendo isso.”
“A gente não quer colocar o dedo na cara de ninguém, não estamos querendo cancelar ninguém, a gente trocou todos os nomes nas histórias, a gente não quer atacar nenhum homem. Eu brinco que a gente quer, na verdade, fazer o ‘boy xodó’ no próximo livro, porque acreditamos que pode melhorar. A ideia é que esse livro seja um ponto de partida para uma reflexão. Não estamos odiando os machos, só queremos que eles melhorem um pouquinho”, brinca Bebel.
A HQ Boy Dodói está em campanha de financiamento coletivo até o próximo dia 6 de agosto. A expectativa é que a coletânea tenha aproximadamente 100 páginas, com miolo em papel pólen impresso em duas cores (“Um verde meio petróleo com um magenta. Vai ficar bem bonito”, antecipa Bebel Abreu), caso a primeira meta, de 80 mil reais, seja alcançada. Se a arrecadação dobrar a meta, o livro ganhará capa dura e novas histórias. Os apoios variam de R$ 30 (livro digital) a R$ 420 (pacote completo de recompensas). A partir de R$ 80 é possível receber a obra impressa em casa.
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