O programa Fantástico da TV Globo exibiu, há duas semanas, uma longa reportagem para comprovar que a Terra é redonda. A inusitada matéria foi ao ar para contestar algo inimaginável em pleno século 21: a volta da estapafúrdia teoria da Terra plana, propagada por um monte de gente biruta e até corroborada pelo guru ideológico da extrema-direita que desgoverna o Brasil. Essa mesma extrema-direita, hoje no poder, cuja administração é marcada pelo retrocesso e desmonte das conquistas econômicas e sociais dos últimos anos, fez ressurgir um fantasma que muitos julgavam estar bem longe, a possibilidade da volta das crises cíclicas de produção do cinema brasileiro, uma característica histórica de nossa cinematografia.
Desde sua chegada à presidência da República, Jair Bolsonaro e seus ministros têm realizado ações que, pouco a pouco, estão colocando o cinema brasileiro numa situação extremamente delicada, igual ou mesmo pior do que a maior crise já enfrentada pelo cinema nacional, em 1990, quando o então presidente Fernando Collor, acabou vários mecanismos de incentivo à cultura no país e extinguiu a Embrafilme. E como no episódio da Terra plana, em pleno ano de 2019, os cineastas e artistas em geral estão mais uma vez tendo que lutar e resistir para não serem tragados pela política de terra arrasada do governo Bolsonaro.
No início da semana passada a atriz Marieta Severo, em entrevista ao Canal Brasil, comentou as oscilações das políticas públicas para o audiovisual. Marieta foi a protagonista do filme Carlota Joaquina, de Carla Camuratti, que em 1992 se tornou o marco da Retomada do Cinema Brasileiro. O vídeo circulou amplamente nas redes sociais e é um alerta para o que vem acontecendo hoje. As consequências da paralisação da Agência Nacional do Cinema (Ancine) já estão sendo sentidas e provocando as primeiras turbulências na produção de filmes.
Convocação para a luta
Aqui em Pernambuco o efeito dessa situação já se reflete no edital do Funcultura Audiovisual, do Governo do Estado. Desde 2015 existia uma parceria entre a Fundarpe e a Ancine, onde a agência nacional complementava os recursos dos editais locais. Até o momento, no entanto, os dois órgãos não chegaram a um acordo sobre esse apoio, por conta sobretudo da instabilidade da Ancine, e o edital 2018/2019 ainda não foi lançado. Com isso vários projetos estão paralisados e cineastas e produtoras estão sem perspectivas sobre o que vai acontecer com a cadeia do audiovisual pernambucano nos próximos meses.
Para esclarecer e pressionar por uma solução, a Associação Brasileira de Documentaristas e Curta Metragistas e a Associação Pernambucana de Cineastas ABD-APECI estão inclusive realizando nesta segunda 23/09, às 18h, no sexto andar do Edíficio Pernambuco, uma reunião para apresentar um balanço das negociações realizadas em torno do edital. As duas entidades pretendem prospectar os cenários possíveis, a definição de estratégias coletivas de luta e convocam toda a categoria do audiovisual para o engajamento.
A preocupação das entidades é legítima diante dos ataques que o setor do audiovisual vem sofrendo. E, ao nosso ver, o que vem acontecendo hoje é mais grave e perigoso do que na crise de 1990. Se naquele momento uma das justificativas para o fim da Embrafilme foi principalmente de ordem financeira, atualmente o desmantelamento do audiovisual é justificado por um discurso ideológico e moralista, com censura ao conteúdo das produções audiovisuais e reiterados ataques a grupos sociais que ganharam visibilidade e tiveram seus direitos legitimados como é o caso da comunidade LGBTI+.
Se não houver reação, toda a política desenvolvida para o audiovisual nos últimos anos poderá desaparecer. É espantoso que isso aconteça exatamente num momento em que o cinema brasileiro esteja dando provas da sua capacidade de movimentar a economia, gerar empregos e renda. Os prêmios internacionais, o êxito de público de filmes como Bacurau, de Kleber Mendonça Filho, Que Horas ela Volta?, de Anna Muylaert, entre outros, revelam o amadurecimento do cinema nacional e põe por terra os argumentos idiotas de que a produção audiovisual vive de “mamata”. Não podemos deixar que os boçais entreguistas nos levem de volta ao “cinema em ciclos”!