Tulipa Ruiz
Habilidades Extraordinárias
Brocal Edições, 2022. Gênero: Pop, MPB
A voz inconfundível de Tulipa Ruiz, que brinca com os vocalizes, ousa nos agudos e termina as frases num vibrato característico rege uma instrumentalização clássica e ao mesmo tempo sofisticada em Habilidades Extraordinárias. O álbum, além de quebrar um jejum de sete anos, brinda a carreira premiada e consolidada da multiartista.
Conquistar os patamares que Tulipa alcançou sendo mulher e artista independente num país tão misógino quanto sucateador da cultura como o Brasil, não foi uma tarefa fácil. A conquista de um Grammy Latino coroa sua trajetória. Se manter neste posto também não é uma das tarefas mais simples, ainda que o novo trabalho transborde a fluidez e naturalidade artística já entregues nos lançamentos anteriores.
Sua discografia acumula os premiados Efêmera (2010), Tudo Tanto (2012), Dancê (2015) e TU (2017). A parceria de produção com o irmão Gustavo Ruiz tanto se mantém no novo disco quanto se inova a partir de sua construção. O resgate a uma captação analógica, gravada na fita, é um triunfo do trabalho. Um som limpo, diga-se, simples mas não simplório. A presença protagonista da guitarra unida a potência de um contrabaixo ousado nas escalas, com uma percussão de ótimo tom arma um campo jazzístico, que flerta com a MPB e tem na veia resquícios do rock nacional.
Tulipa entrega em Habilidades Extraordinárias faixas solares, as quais ainda assim trazem letras de protesto, desabafos, e mensagens que chamam atenção a certas dores, dialogando aos tempos de turbulências políticas, ambientais e sociais do Brasil. “Estardalhaço” por exemplo, levanta discreta porém não oculta a discussão sobre violência contra a mulher, quando na letra diz Não matou mas hematoma apareceu aqui e Ficou derrubada ficou mesmo na pior, Quem notou não se mexeu, Quem notou não se importa mais.
Outros destaques ficam por conta dos movimentos líricos. Em “Pluma Black” feat Negro Leo, a letra lança em disparada encontros consonantais com l, assim como o título. Já “Kamikaze Total”, dita ágil palavras aparentemente avulsas, que juntas formam a personalidade da mulher cheia de atitude apresentada pelo eu lírico.
Se ouvido na sequência proposta pela cantora, embarcamos numa tendência sonora quase uniforme nas primeiras seis canções, completadas por “Samaúma”, “Novelos” e a faixa homônima. A sétima troca os ares. “Não Pira” abraça as batidas do funk no feat com Jonas Sá. O beat tradicional do estilo normalmente produzido por synths, aqui ganha uma roupagem quase acústica e mais suave.
“Acho Que Hoje Mesmo Eu Dou” está mais para o rock nacional a la Rita Lee. Bem como “Vou Te Botar No Pau”, entre um fluxo mais punk da guitarra e os muitos pratos da bateria, abordando sobre o abuso trabalhista. O desfecho vem com “O Recado” que está entre um samba bossa nova, lembrando até as canções mais brandas do axé music.
O disco quebra o jejum de Tulipa e alimenta os fãs e a música independente brasileira. O título foi escolhido através de uma história cômica com um fiscal de visto durante uma viagem de Tulipa e Gustavo. O fiscal os perguntou se eles teriam alguma “habilidade extraordinária”. A resposta que carimbou os passaportes foi justamente a conquista do Grammy. A partir disso, a artista começou a pensar na expressão e ver que até mesmo as atividades cotidianas podem ser habilidades extraordinárias.
Após sete anos sem lançar álbuns, Tulipa se renova e reafirma uma habilidade extraordinária sua: manter sua qualidade musical.