Anora
Sean Baker
EUA, 2024. 2h19. Drama/Comédia. Distribuição: Universal
Com Mikey Madison, Mark Eydelshteyn, Yura Borisov
A eletricidade dos corpos jovens à procura da satisfação de seus desejos. Ziguezagueando no berço do capitalismo ocidental, os Estados Unidos da América, os personagens de Anora (2024) anseiam por experienciar os prazeres que jorram das jacuzzis nos hotéis de luxo e nos jatinhos privados. Mas a realidade não é conto de fadas. Bastante mencionado na crítica especializada como uma espécie de Cinderela às avessas, o novo filme de Sean Baker (Tangerina e Projeto Flórida) é uma interessante observação acerca das relações sociais e de classe, ainda que opte por uma abordagem majoritariamente zombeteira.
Vencedora da Palma de Ouro do Festival de Cannes 2024, a obra nos apresenta o cotidiano da protagonista Anora (Mikey Madison), garota de programa estadunidense que, em meio às dezenas de clientes do clube no qual trabalha, conhece Ivan (Mark Eydelshteyn). Filho de um ricaço russo, o jovem contrata-a para ser “sua namorada durante alguns dias”; com a impulsividade característica da mocidade, ambos decidem se casar para Ivan se tornar cidadão norte-americano e não precisar deixar o país. Quando a família do playboy europeu descobre a notícia, a vida do casal se torna uma montanha-russa (com o perdão do trocadilho pátrio) frenética. O roteiro, até então quase de comédia romântica juvenil, prorrompe em acontecimentos tresloucados e surpreendentes.
Os elementos da narrativa são um prato cheio para Sean Baker, diretor de inegável talento. O cineasta retoma a temática da indústria do sexo, presente em obras anteriores como Red Rocket (2021) e Tangerina (2015). Em Anora, é admirável como a montagem, logo nos primeiros minutos, escancara o caráter exaustivo da profissão, ao intercalar sequências da personagem-título com inúmeros clientes. Não coincidentemente, após as cenas repletas de luz neon e sensualidade na boate, o diretor faz um corte seco para Anora dormindo num vagão de trem (com significativa alteração da fotografia para cores mais frias).
Em filme cuja sexualidade é elemento palpável, o tratamento dado aos momentos mais explícitos é realista, sem caretice; talvez a câmera de Baker, homem, objetifique o corpo feminino em determinados ângulos. Entretanto, ao seu favor, pode-se compreender que o olhar fetichizado, muitas das vezes, é a representação da visão dos personagens sobre aquelas mulheres. Acho curioso como as primeiras cenas entre Anora e Ivan são mais sensuais e, ao decorrer da projeção, se tornam episódicas, mais rápidas e cômicas – modo acertado da edição em decalcar a natureza daquele relacionamento.
Quando a presença de determinados personagens russos tempestua a narrativa, a história envereda para um rumo ambíguo. Caótico aos moldes dos suspenses dos irmãos Safdie, Anora se torna uma galhofa na qual Sean Baker tenta, aqui e ali, pincelar elementos de humanismo que, para este crítico, não funcionam. À exceção da bonita última cena no carro, o filme renuncia a complexidade de assuntos como prostituição e imigração, decidindo trazer ao centro da narrativa a superficialidade cômica-afetiva de personagens estereotipados. Incomoda-me a representação caricata dos capangas russos, brucutus violentos que falam de boca cheia. Abraçando o clichê, o enredo traz o bad boy mais sensível, sempre enquadrado junto a Anora e que, ao final do filme, sem surpresas, mostra-se generoso e compreensível.
Com uma capacidade dramática louvável, a jovem Mikey Madison é o destaque do filme; atuação digna de todas as indicações a prêmios que têm atraído nos últimos meses. A atriz combina energia e introspecção numa performance marcante. O filme é nutrido por sua força, assim como pelo esforço estético empreendido por Sean Baker. Longe de ser genial, Anora é eficiente ao que se propõe, hábil em tensionar a experiência do espectador. Ainda assim, enxergo uma narrativa descompassada, mantida num espectro de frivolidade que a impossibilita de penetrar camadas mais densas e intrigantes.
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