– O homem, você vê como um explorador de mulher?
– É mais ou menos por aí.
É a penúltima pessoa-surpresa que Silvana Socorro de Almeida recebe para conversar e a essa altura você espera que as tintas rosa-choque vermelho-sangue marrom-coágulo feministas que ela espirra, uma a uma, na cara de seus interlocutores já tenham se tornado… bem, bastante evidentes.
Mas o documentário Sete Visitas, onde Silvana é entrevistada por gente com as quais jamais encontrou até o momento da câmera ligada, recebeu resenhas outras – mais distraídas com a ótima exploração da técnica da entrevista e com a seguramente deliciosa presença do consagrado cineasta Eduardo Coutinho entre os conversadores.
Douglas Duarte, o diretor, foi bem mais longe que isso: jogou os holofotes sobre uma mulher comum, para sempre sentada à espera de seu próximo diálogo, passiva como uma Penélope, e acabou revelando-a como o indiscutível sujeito ativo do filme. Mais que ativa, Silvana é ativista em seu próprio devir: responde, com insistente olhar crônico, sobre quem é, o que faz, que é casada, tem filhos e tudo aquilo que a qualificaria como uma mulher adequada à trama social. Sou do Paraná, faço acabamento em calça jeans, já cortei cana, já fui cafetina, entreguei a terceira filha pro pai que mora na Bahia e nunca mais a vi – e algumas outras declarações ditas chocantes, mas jamais em tom confessional. Sua inescapável dignidade prevalece.
Há dores, mas não há culpa. A culpa, certeza dentro de qualquer mulher que entenda a ainda precaríssima condição do feminino, é dessa lama de pano de fundo patriarcal. Para Silvana em particular, mas muito direta e publicamente, também é sobretudo dos homens. Afinal, são eles os responsáveis por suas fugas (às vezes geográficas) de relacionamentos aonde ela não era capaz de amar de volta. Que foram todos com quem ela se envolveu.
A maternidade recusada, a rebeldia diante de afetos insatisfatórios – somadas à pele parda e alguma pobreza – a tornam uma espécie desestabilizadora de fêmea que, como tantas de nós, simplesmente não se enquadra. Como ela ousa?, pensarão muito mais espectadores do que gosto de acreditar.
E ela o faz para muito além da maciez das moças bem nascidas e intelectualizadas das grandes metrópoles, sem ter ninguém que intervenha a seu favor.
O que não evitou que sentisse um alento pueril quando na presença de duas delas, terapeutas do fogo sagrado xamânico. Ao tentarem aliviar as possíveis mágoas de Silvana por intermédio da evocação de arquétipos e discursos articulando problemáticas genéricas da psique feminina, Silvana desarma, chora, se deixa ninar à distância.
Não são os grandes espíritos, nada a ver com Pacha Mama. É o simples espelho formado por outras duas mulheres diante dela, fazendo um tríptico, aí sim, sagrado. Mulheres, inimigas por natureza? Conta outra, meu caro. Uma mulher é quem entende de outra mulher.
(Mas sim, muitas de nós querem vocês, os melhores rapazes, assim, bem pertinho. De preferência fazendo filmes como esse.)
É diante de entrevistadores com vaginas que confirmamos a tal da sororidade. Com Ana Paula Maia, Mônica e Letícia acontece a reunião. As armaduras se dissolvem com rapidez inequívoca, elas se amalgamam em intimidades universais. A exceção fica por conta de Coutinho, com quem Silvana celebra a devoção ao palavrão num pequeno e breve altar defumado por cigarros. E mais cigarros.
Assim como tantas mulheres negam com jogos de estilo – ou tão somente nunca a assimilaram -, Silvana repele a feminilidade tão problematizada por Beauvoir (passou de ano, Enem). Isso explica a violência latente quando o entrevistador juiz a acusa de estar sentada “em posição de defesa”, para o qual Silvana se defende com um cruzar de pernas em trejeitos de mocinha. Ela comenta a evidência forjada:
– É bom sentar assim como mulher, né?
Então, o inapelável assédio masculino:
– A ostra abrindo é que a gente vê a pérola.
Como vemos, é Silvana quem esmiúça seus visitantes.
E eu menti pra vocês. Houve um entrevistador que Silvana conhecia desde sempre, e o verdadeiro abrir de pernas aconteceu: foi com a filha Clilslaine, a última visitante.
Vocês assistem aqui, e depois contam pra mim.
http//vimeo.com/100948406