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(Foto: Paula Muniz/ Divulgação)

Afro’G reflete e reimagina sobre o ato de ser criança na exposição “Nostalgia: Memória e Infância Negra”

O artista recifense resgata a infância periférica e questiona a forma como a sociedade enxerga e lida com as crianças

“Toda criança é artista”, afirma Afro’G, artista recifense que nasceu e cresceu na Favela do Detran, Zona Oeste do Recife. Agora como um adulto artista, ele leva ao Cais do Sertão a sua nova exposição, Nostalgia: Memória e Infância Negra, uma reflexão construída a partir das lembranças de sua própria infância como uma criança negra e periférica. 

Quem está por trás do pseudônimo é Ricardo Gabriel, 23 anos, que nasceu no Recife e depois foi morar em Limoeiro, no Agreste, por conta da separação dos pais. Na infância, surge uma figura central de sua vida e da exposição: dona Joana, a avó e maior incentivadora da criança artista que se tornou Afro’G

Dona Joana

“Eu não fui criado pela minha avó por várias questões socioeconômicas, mas eu sou quem eu sou, uma pessoa boa, por conta dela, pelos princípios que ela tinha. Um deles era o de ‘sempre acreditar nas pessoas’. Ela tentava, sempre de forma positiva, acreditar que eu chegaria em algum lugar, falava o quanto eu sou inteligente, o quanto eu sou artista.”

A consciência das dificuldades de fazer arte e ser reconhecido enquanto artista no Brasil é um aspecto definidor na forma como Afro’G enxerga seu trabalho. Como alguém que nunca teve acesso aos meios formais da formação artística, ele aponta que a visão de sua avó foi o principal impulsionador para que ele seguisse o seu sonho. 

“Foi uma figura essencial. Uma mulher analfabeta que me dava livros. Ela poderia ter dito ‘vai catar reciclagem comigo. Você só vai ser o catador de reciclagem’, entende? Então tudo eu lembro da minha avó, desde que ela faleceu e até antes. Ela faz falta nesse mundo onde as pessoas desacreditam uma das outras”, conta o artista.

Um dos livros que Dona Joana deu ao neto está exposto em um espaço da mostra dedicado a ela. Um exemplar de Tudo sobre arte, escrito por Stephen Farthing e Richard Cork, uma espécie de livro introdutório para quem estuda arte e um dos primeiros instrumentos que ajudou a construir o olhar de Afro’G enquanto artista. 

O direito de ser criança

O livro é apenas uma parte do grande exercício de memória que é a exposição. A máquina de fliperama e a bomboniere giratória são alguns dos itens que compõem a atmosfera nostálgica já exposta no título da mostra. Além das telas que mesclam as ilustrações com brinquedos e outros materiais reciclados.

As lembranças também estampam obras como Banho de Bacia; Talia, inspirada em uma amiga de infância que era craque em jogar bola; ou Inmetro, que veio do questionamento do artista aos limites sociais da idade para brincar. 

AfroG inaugura exposição Nostalgia em Recife Crédito Paula Muniz @paula muniz352.jpg1
(Foto: Paula Muniz/ Divulgação)

“Eu viajava muito nessa questão do Inmetro recomendar a idade para brincar. Claro que é porque tem umas peças que uma criança poderia engolir, mas penso na questão de dar uma idade para a brincadeira”, diz o artista. “Eu cresci num contexto que as pessoas de 12 anos já são adultos. Quando eu tinha 18 eu achava que eu não teria mais futuro nenhum, que não ia conseguir me inserir numa universidade ou em outros meios sociais.”

Ao subverter toda a carga social posta sobre ele, Afro’G percebeu que a sua arte poderia ser o lugar de construir outras imagens, outras possibilidades, de infância e de futuro, em uma representação que quebra estereótipos das vidas nas periferias. 

“Não sou um cara tão velho, tenho 23 anos, mas eu cresci numa época que não tinha herói negro, não tinha figura de beleza negra, e hoje quero representar essa gama de figuras pretas no meu trabalho. E nisso posso ver que meus irmãos vão ter um futuro muito melhor que o meu e uma vão ter uma infância melhor. É muito gratificante.”

Eu falo para as pessoas: será que quem a gente chama de gênio, realmente, é gênio ou só teve acesso?

Ao mesmo tempo em que a exposição confabula e vislumbra outras possibilidades de futuro, o viés crítico aparece quando o artista pensa na sua trajetória e imagina quantos diversos outros artistas poderiam ter existido se houvesse acesso à arte e seus instrumentos e, principalmente, se pudessem ter tido o direito de se imaginar artistas enquanto crianças, uma realidade que desaparece cedo em certos contextos por uma questão de necessidade. 

“Eu falo para as pessoas: será que quem a gente chama de gênio, realmente, é gênio ou só teve acesso? Acesso a uma academia de arte; não precisar abrir mão de diversas coisas, como muitas pessoas da periferia. Pessoas que têm um talento absurdo e não estão mais aqui porque morreram ou precisaram fazer outra coisa da vida”, aponta Afro’G.

“Seja o adulto que você precisava quando era criança!”. Essa frase está estampada em um dos murais da mostra, visível logo na entrada, e representa grande parte do que Afro’G quer falar e mostrar com Nostalgia: Memória e Infância Negra. Um questionamento de dentro pra fora – repensando a forma como lidamos com as crianças à nossa volta – e de fora para dentro – reavaliando, também, como tratamos a criança que um dia fomos. 

“O Gabriel criança ficaria muito feliz de ver esse Gabriel de agora, o Afro’G. Além disso, ter essa percepção de que todas as crianças, mesmo que não sejam meu filho ou meu sobrinho, devem receber ajuda. Acho isso essencial. Eu fui uma criança que recebeu ajuda de muitas pessoas que às vezes nem sabiam o quanto estavam fazendo. A frase desse mural é o resumo dessa exposição.”, finaliza o artista.

A exposição Nostalgia: Memória e Infância Negra fica aberta para visitas no Centro Cultural Cais do Sertão, no Bairro do Recife, até o dia 23 de setembro. A mostra está no terceiro andar, na sala Moxotó, das 10h às 16h de terça a sexta-feira e das 11h às 17h nos finais de semana.

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