Adeus a Elza Show, transformista ícone da cena LGBTQIA+ do Recife: “Porque Elza é Elza”

Mulher trans, negra e periférica, a artista pernambucana fez carreira inspirada pelas divas da MPB

elza show
Elza acumulou admiradores em mais de 30 anos de carreira. (Foto: Reprodução/Odilex Felix/Vakinha.com.)

A artista transformista pernambucana Elza Show, nome icônico da cena LGBTQIA+ no Recife, morreu nesse domingo (09), aos 83 anos. Este é nosso obituário em sua homenagem.

A vida cultural da comunidade LGBTQIA+ é intensa e diversa. Todavia, por inúmeras razões, artistas deste segmento nem sempre têm o reconhecimento que merecem. Ser artista LGBTQIA+ é enfrentar o conservadorismo vigente nas diferentes camadas e extratos da nossa sociedade, encarar o padrão heteronormativo que rege a cultura de uma maneira geral e, o pior de tudo, ter que lutar constantemente contra a LGBTfobia. O apagamento desses artistas ainda é mais gritante quando eles não dispõem de meios para se inserirem nos equipamentos culturais oficiais e terem acesso aos meios de difusão artística.

Apesar dos obstáculos, não é difícil encontrarmos gays, lésbicas, travestis, transformistas, homens e mulheres trans que enfrentam as adversidades e alcançam algum sucesso, conseguindo sobreviverem de sua arte, mesmo que circulem quase exclusivamente nos locais LGBTQIA+ ou “amigáveis”.  Em geral, eles são exemplos de resistência, perseverança e, para mostrarem seu talento, contam com o apoio da comunidade formada por aqueles que, como eles, enfrentam os mesmos preconceitos. Assim, é por esse caminho que muitas transformistas, travestis, drag queens, DJs ganham, hoje, maior projeção e, graças aos movimentos de luta pelos direitos LGBTQIA+, vão tendo maior visibilidade para seus trabalhos.

É nesse contexto, que encontramos Elza Show. Mulher trans, negra e de origem humilde, Elza foi o exemplo de uma pessoa que, por meio da arte, superou toda sorte de barreiras e, mesmo à duras penas, tornou-se uma cantora capaz de sobreviver do seu talento. Filha de uma família muito religiosa, ainda jovem, Elza teve que ganhar o mundo. Para conseguir uns trocados, cantava nas feiras dos bairros da Zona Norte do Recife, e com o passar do tempo, com a ajuda de amigas, foi cantar em bares.  Sua vida mudou quando conheceu, na década de 1970, Mário Francelino, um fã inveterado da cantora Dalva de Oliveira e proprietário do Cantinho Dalva de Oliveira, um bar localizado no bairro do Cajueiro (Zona Norte do Recife) que, nas noites de sexta e sábado, oferecia aos fregueses música ao vivo.

elza show2
Elza Show foi protagonista do documentário Eternamente Elza, que concorreu ao Mix Brasil, em 2013. (Divulgação).

No início, Elza se apresentava vestindo caftãs em estilo afro, mas à medida que foi se sentido mais segura, passou a cuidar mais do visual e a usar vestidos brilhantes, maquiagem e colares. Seu nome artístico, segundo ela mesmo contava, foi uma homenagem à sambista Elza Soares de quem era grande admiradora. Suas apresentações tinham no repertório, além de músicas de Elza, canções de Dalva de Oliveira, Ângela Maria, Núbia Lafayete, Clara Nunes, entre outras. O show acontecia na área externa do bar junto a uma frondosa mangueira. O Cantinho era frequentado pelos moradores do bairro, boêmios e a presença de Elza Show passou a atrair também o publico LGBTQIA+ pois, na época, o Recife não dispunha, nos subúrbios, de muitos lugares onde gays e lésbicas pudessem ficar à vontade.

Graças ao Cantinho Dalva de Oliveira, onde ela foi a estrela por mais de 30 anos, Elza Show passou a se apresentar em bares e restaurantes da orla da cidade de Olinda e ganhou um grande número de admiradores seduzidos pelo seu jeito de interpretar as canções das grandes divas da música popular brasileira, uma grande diferença em relação às transformistas que apenas dublam.

Com o fechamento do Cantinho e a mudança do perfil da orla de Olinda, Elza Show continuou se apresentando em outros locais, sobretudo, nos palcos das saunas gays. Com iniciativa de amigos e produção de Vicente Neto, a Imperatriz, Elza teve um CD independente, gravado em 2012, com as principais músicas que ela apresentava nos shows, dentre elas, uma versão da canção “Babaloo”, uma das preferidas do seu público.

Em 2003, juntamente com Paulo Feitosa e a colaboração de Sergio Dantas e Pedro Severien, realizei o documentário Eternamente Elza. O filme tem entrevistas com ela e partes do show que realizou especialmente para ser registrado pelas câmeras. Tanto no dia da gravação, quanto no lançamento ocorrido no próprio Cantinho Dalva de Oliveira, o bar ficou pequeno para receber tanta gente, uma prova inconteste que Elza tinha admiradores de todos os gêneros e classes.

O filme, em 2013, foi remontado por Chico Lacerda e ganhou uma versão mais curta para ser disponibilizado no YouTube e enviado para festivais de cinema. Eternamente Elza participou da mostra competitiva de festivais como o Mix Brasil, em São Paulo; o For Rainbow, festival da diversidade de Fortaleza, Ceará, entre outros. Também foi exibido no Festival de Cinema da Diversidade Sexual e de Gênero do Recife (Recifest), em 2017, com Elza Show como uma das personalidades homenageadas. O interesse e a boa recepção do documentário aconteceram muito mais pela presença de Elza do que pela cinematografia, pois não resta dúvida que o seu maior atrativo é sua protagonista, pelo que ela representava no universo cultural LGBTQIA+.

O valor artístico e cultural de Elza Show é, portanto, inquestionável. Sua carreira mostra-se relevante por diversos aspectos, tanto pela sua história de vida, marcada pelo amor a arte do canto, a veneração e respeito pelas divas da música popular brasileira, quanto pela sua atitude em assumir uma persona feminina e não ter vergonha nem ressentimentos por sua escolha. Numa época em que os movimentos de liberação homossexuais ainda estavam dando seus primeiros passos no Brasil, Elza, ao seu modo, mostrou que era possível ser uma mulher trans a qualquer hora do dia e da noite, levando sua expressão artística para qualquer público. E como ela mesmo diz no documentário: Porque Elza é Elza!