Abulidu
Códigos Periféricos
Independente, 2023. Gênero: Pop, MPB
A ideia dos Quilombos, segundo relatos portugueses mais frequentemente encontrados nos livros de história, seria um lugar de refúgio para pretos escravizados. Essa definição acaba por ser reducionista diante dessa grande sociedade organizada que além da fuga, servia como instrumento de defesa à liberdade do povo negro. Depois de 135 anos da abolição da escravatura no Brasil, o racismo estrutural e vigente deflagra que tal anulacão fora, em suma, simbólica.
O desafio de viver numa nação traumatizada e estruturada pelas manchas coloniais, deterministas sociais à vidas pretas faz retomar esse conceito erguido por líderes como Zumbi dos Palmares, de construir quilombos em novas formulações, conceituais, de discursos, de narrativas. Colocar em ação o ato de aquilombar. É nessa missão que a banda pernambucana Abulidu nasceu e que espalha sua palavra através do primeiro disco da carreira, Códigos Periféricos.
A periferia é fruto do povo preto. Dados do Instituto Locomotiva de 2021, revelam que 8% da população brasileira vive em favelas, sendo 67% dessa quantia representada por pessoas negras. A problemática social aqui ganha novos contornos, tornando esses locais, quilombos também. Hélio Abulidu, Paulinho Folha, Raphael César, Rogério A. Martins, Arnaldo do Monte e Thulio Xambá, todos homens negros de origem periférica, trazem essas vivências no novo disco, reformulando narrativas pejorativas dadas as favelas, explorando o espaço de pertencimento, coletividade, arte e ancestralidade. Esses conceitos representam além de suas comunidades, como também um Pernambuco extremamente influenciado pela África, seja nos mais de 100 baobás vindos de lá presentes no nosso território, seja nas influências culturais incontáveis trazidas por pretos escravizados que desembarcavam no porto do Recife no século XIX.
A banda, formulada em 2019, já nos primeiros lançamentos, dava o tom de seus princípios afropernambucanos e antirracistas. Primeiro com “Quilombo Urbano”, em que se autodenominam quilombolas de rua e convidam vamo aquilombar; depois com “Abulidu”, com versos rápidos e sagazes, uma verdadeira língua afiada ferindo racistas e a gingada e empoderada “Boys de Baobá”. O trio de faixas já é capaz de revelar a mescla sonora, plural e envolvente da banda. Em meio ao discurso potente nas letras, coco, brega funk, funk, samba, afrobeats, ritmos de matrizes africanas e rap como fundos ilustres.
Junto a duas das adiantadas, Códigos Periféricos apresenta novidades como o destaque “Gente Uó”. Uma prévia dessa já circulava no Youtube do grupo em apresentação no Pré-AMP 2022, o suficiente para atrair a audição e vibração do público. Com métrica ágil nos vocais, a banda diz determinada que não está com paciência para filosofias vãs. Combate direto aos ataques racistas, e aos fascistas, nazistas e supremacistas. Movimentos difíceis de não associar a um cenário de ascensão devido ao crescimento da extrema direita nos meandros políticos atuais do Brasil.
A celebração também é uma marca do disco. É mostrar que a abordagem da negritude vai para além do racismo. O festejo também é regido por parcerias com artistas pernambucanos. Abulidu cultua a negritude e ancestralidade em “Celebrai”, uma panela preta na pressão cheia de ingredientes, servindo também como uma homenagem ao produtor Buguinha Dub, com quem fecham um feat nessa, junto aos sopros de Neri Rodrigues, no trombone, André Luiz, no trompete e Rafael Martins, no saxofone.
O cerimonial se estende em “Diamantes Negros”, contando com as vozes de Dio Santos e Winne Kássimo, abraçando o samba. Em “Nascimento Grande”, a banda chama Cannibal Santos e Samuel Negão para homenagear o grande capoerista recifense que entitula a faixa. A sonoridade desta é um refresco ao Manguebeat, mesclando elementos do samba, a uma guitarra roqueira, a tambores embalados e a estética potente e ousada a la Nação Zumbi no canto.
Também se celebra em “Negrarte”, parceria com Odailta, destacando nomes marcantes para a construção da arte e musicalidade preta como Gilberto Gil, Milton Nascimento, Djavan, Djamila Ribeiro, Lauryn Hill e Carolina de Jesus. Odailta inclusive fecha a faixa com uma recitação tocante, exaltando as potencialidades da mulher negra. E em “Ifé”, a mais romântica da sequência, o grupo exala a manifestação do afeto. Ifé quer dizer amor na língua Yorubá, típica da Nigéria. A faixa retrata um afeto preto, saudando também toques de terreiro na percussão.
A sequência de faixas é completada por “Não é Oba Oba é Baobá”, onde o conjunto reforça não ser moda, não ser nova cena, e sim realidade. Com trechos como Camisa africana, calção de favela, revelam que sou a elite e citações às suas comunidades, como Suvaco da Cobra em Barra de Jangada, evidenciam esses códigos periféricos que inspiraram na construção do trabalho.
A propósito, o que abre o disco é a vinheta “Rádio Favela”. Essa rádio é o que capta, musicaliza e transmite esses códigos, tornando o álbum de estreia da Abulidu este emissor, da favela, da negritude e da diversidade sonora pernambucana. Cada elemento aqui importa, o discurso da banda transborda e ecoa em meio ao som. Conscientiza, faz refletir e agrupa quem traz nos 35 tons de preto na pele esses códigos periféricos. É o aquilombamento em música.
Ouça Abulidu – Códigos Periféricos
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