A Queda do Céu
Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha
BRA, 2025. 1h50. Documentário. Distribuição: Gullane+
Abro o livro aleatoriamente, revolvo páginas na intenção explícita de encontrar uma citação adequada, palavras melhores do que as minhas que começo agora a escrever. No final do capítulo 24, A morte dos xamãs, a síntese perfeita; transcrevo. “Estamos apreensivos, para além de nossa própria vida, com a da terra inteira, que corre o risco de entrar em caos. Os brancos não temem, como nós, ser esmagados pela queda do céu. Mas um dia talvez tenham tanto medo disso quanto nós! Os xamãs sabem das coisas más que ameaçam os humanos. Só existe um céu e é preciso cuidar dele, porque, se ficar doente, tudo vai se acabar”.
Estes e outros ensinamentos, advertências, de Davi Kopenawa fazem de A Queda do Céu, o livro, documento essencial para quem se aflige com os rumos climáticos do planeta e enxerga nos povos originários luz. Da obra literária, assinada por Kopenawa e pelo antropólogo francês Bruce Albert, nasceu o documentário homônimo que chega aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (20). Dirigido por Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha, o filme examina a cosmologia Yanomami a partir de uma imersão honesta e fluida no cotidiano da comunidade de Watorikɨ, no Amazonas. Livres da perspectiva excessivamente etnográfica que, em muitos casos, corroboram para a perpetuação de estereótipos, os realizadores conseguem extrair imagens e depoimentos altamente relevantes para a proposta narrativa.
Notável o plano de abertura que, sem pressa, no tempo das coisas, contempla a chegada do grupo de indígenas, liderado por Kopenawa. Munidos de arcos, flechas, facões, caminham os Yanomami ao encontro da câmera, numa tradução cinematográfica belíssima da resistência de um povo que, historicamente violentado, não se entrega e segue de pé. Através principalmente dos relatos de Davi Kopenawa, somos levados a adentrar a floresta sob a ótica daqueles que realmente a vivem. Entre os xamãs, a preocupação oriundas dos sonhos com os xapiri (espíritos): a devastação provocada pelo garimpo e pela mineração, ações que atentam contra o equilíbrio na natureza. Hoje, o céu ainda encontra-se suspenso. Mas até quando? As previsões são de desmoronamento. Contudo, ainda há tempo.
Ao entrecruzar imagens panorâmicas (que expressam a magnitude amazônica) com planos-detalhe da biodiversidade local, A Queda do Céu aguça a percepção de como a luta micro – se considerada a restrição geográfica do povo Yanomami – reverbera em questões globais. Os efeitos da infiltração irresponsável de empreendimentos corporativos são alarmantes: Kopenawa e outros representantes do povo Yanomami revelam como a mineração tem provocado a eclosão de doenças como malária e pneumonia nos indígenas da região. O receio com os brancos é tanto que, em determinado momento do filme, um indígena entrevistado se pergunta se a equipe de gravação é mesmo aliada da causa Yanomami, se aquela conversa filmada adiantará de alguma coisa.
À exceção de alguns didatismos estéticos pontuais (como inserir imagens de prédios a desmoronar, durante fala sobre a iminência de novos cataclismos no mundo), a direção da dupla Rocha e Carneiro da Cunha é eficaz ao tecer um documentário que exala respeito à oralidade dos personagens, matéria-prima da narrativa filmada. Mesmo diante das previsões apocalípticas (ou realistas) sobre o futuro da humanidade, os realizadores têm a sensibilidade de enaltecer a representação da infância indígena no filme. As crianças, captadas pela câmera, retratam as possibilidades de outros futuros, outras formas de o planeta existir.
Para quem se interessa na carreira dos filmes em premiações, A Queda do Céu participou de cerca de 80 festivais no Brasil e no mundo; entre os prêmios internacionais recebidos, venceu o Grande Prêmio do Júri da Competição Kaleidoscope do festival DOC NYC e o Prêmio Especial do Júri da Competição Internacional no DMZ Docs 2024 (Coreia do Sul). No Brasil, conquistou prêmios no Festival do Rio e na premiação da Associação Brasileira de Cinematografia (ABC 2025). Testemunho material de extrema importância, o documentário é maior que suas condecorações: faz jus à luta histórica de um povo que tanto tem a nos ensinar, se soubermos verdadeiramente ouvir e entender o peso do céu.


