A Paixão Segundo G.H.
Luiz Fernando Carvalho
A Paixão Segundo G.H., Brasil, 2024, 2h, Distribuição: Paris Filmes
Não é preciso desenvolver muito para dizer que a escrita de Clarice Lispector é uma das mais marcantes da literatura brasileira. A obra da escritora pernambucana é uma das mais densas da produção nacional contemporânea, tão subjetiva que esbarra, às vezes, no incompreendido. A torrente de pensamentos que Clarice escreve – principalmente em A Paixão Segundo G.H. – torna a adaptação um desafio, embora o longa-metragem homônimo mostre que não é impossível.
O filme começou as gravações ainda em 2018, passando por todos os danos que a pandemia trouxe ao setor do audiovisual e ainda pelas dificuldades culturais do mandato de Bolsonaro. Agora, seis anos depois, finalmente, o longa-metragem chega imponente aos cinemas por escolher adaptar, talvez, o romance mais complexo de Lispector.
O visual, claro, chega primeiro e nos diz muito sobre a vida de G.H. – encarnada por Maria Fernanda Cândido. Um apartamento enorme, luxuoso, cheio de adereços, mas que se torna sóbrio quando entramos no quarto da ex-empregada, Janair (Samira Nancassa), o cômodo mais simples, apertado e desconfortável da casa é onde a protagonista encontra o abismo de sua existência. É nesse quarto que G.H. tem os momentos mais violentos de sua fragmentação.
A sonoplastia é outro catalisador da espiral de sentidos que o filme forma. Enquanto o texto percorre pelas metáforas, hipérboles e confissões, os sons mudam o tom do filme. Uma hora entrega suspense, depois drama, ou romance e assim constrói os desdobramentos da pessoa de G.H.. Da mesma maneira que a imagem, ao longo da fragmentação, se descola da lógica e, em certo ponto, passa a ser um discurso por si só e não orbitando o monólogo da protagonista.
Aliás, a despersonalização da protagonista, como evento principal da narrativa, tem que ser carregado pela atuação de Maria Fernanda Cândido, que tem uma elegância quase aterrorizante enquanto vive G.H.. A medida que o fluxo de pensamento vai se aprofundando e a protagonista navega por emoções – as vezes passando por mais de uma ao mesmo tempo – a atuação de Maria Fernanda corresponde ao desafio. As quebras da quarta parede são excelentes e, algumas vezes, assustadoras.
As falas de G.H. são repletas de nuances, com referências que nem sempre caem no entendimento do espectador; como os objetos que ela cria no seu discurso (a Barata, o Amante, Janair e a Mão), uma hora ela se projeta sobre eles, ou depois tornam-se alegorias para aquilo que teve impacto nela. Essa mudança dos sentidos contínua, que é o fator arrasador do texto, consegue se manter no filme. Um trabalho fino de atuação que consegue trabalhar a construção do inferno de G.H. através da sua linguagem.
A Paixão Segundo G.H. se mostrou uma adaptação digna da obra de Lispector. Embora outras linguagens se juntem na ilustração do romance, o texto continua sendo o centro, e é a partir dessa conservação que o filme consegue causar um efeito atordoante muito semelhante ao do livro. Assim como as palavras, as imagens se tornam o instrumento para tentar alcançar o mais fundo em quem consome, talvez até tocar no espectador o tanto que G.H. sentiu e refletiu.
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