Por Biu da Silva
Lucas entrou para as estatísticas que apontavam o crescimento do número de casais separados por causa da pandemia do Covid-27. Os tantos por cento que lhe caberia nos gráficos era, para ele, uma punhalada nas costas. Embora ele não levasse o que se pode chamar uma vida de casal, o rompimento da relação com Robson abrira para ele a porta da autocomiseração e o conduzia rumo a dados de um levantamento muito mais nefasto: o aumento do número de mortes violentas por assassinato e suicídio dos últimos meses. Os sucessivos lockdowns, a falta de dinheiro e a inépcia do governo, formado por milicianos inescrupulosos, tinha gerado no país um clima de violência que beirava o descontrole. Trabalhando como repórter policial de um grande jornal, os dias de Lucas eram passados percorrendo necrotérios, delegacias, becos escuros e estradas lamacentas. Seus olhos verdes, antes brilhantes e vivos, estavam agora opacos e injetados de um vermelho escuro, como se as imagens de corpos crivados de balas, eviscerados, putrefatos estivessem encharcando-os de sangue. Sua mente atormentada só enxergava a morte no horizonte. Agora Robson o largava. Ele ia pagar por isso.
Consumido pelo pessimismo e pela tristeza, Lucas passou a noite abafada de domingo insone. Seu pequeno apartamento de quarto e sala parecia-lhe a antessala do purgatório. Sem acender as luzes, ele pegou uma vodka, sentou-se no chão, encostou a cabeça na beirada do sofá e começou a beber, direto na garrafa, em grandes goles. Reviu todas as frases ditas na discussão entre ele e Robson, travada, horas antes, pela tela borrada de seu celular e, a cada palavra que recordava ter ouvido – parasita, manipulador, racista, covarde, enrustido –, fazia tomar corpo em seu espírito o desejo de vingança. Os cinco anos da relação secreta com Robson, naquele momento, tornara-se uma massa disforme de ressentimentos. Na cabeça de Lucas, Robson rompera com ele por causa de um arroubo romântico, uma atitude infantil e estúpida. Ele sempre soubera que os colegas de redação e os policiais com quem tinha proximidade não podiam saber que ele era gay, então para que fazer aquilo? Se descobrissem ele seria alvo de risos, comentários às escondidas e todo esforço para manter a sua imagem de macho, uma condição considerada por ele como garantia de sua sobrevivência, estaria destruída. Robson não era inocente. Sabia que ele era a única coisa a valer alguma coisa em sua vida medíocre. Agora o largava só porque ao se cruzarem, na entrada do jornal, ele não percebera que era Robson o rapaz de máscara vermelha próximo a porta. Para Lucas, se Robson o amasse de verdade como lhe dizia não iria deixa-lo por aquela bobagem. Havia algo mais. O último gole de vodka inflamou ainda mais o coração dilacerado de Lucas fazendo brotar, com força redobrada, o ciúme doentio que vivia consumindo suas entranhas. “Não foi por eu não ter falado com ele. Isso foi só um pretexto. Ele não ia parar de querer sair comigo da noite para o dia. Tem outra pessoa nessa história. É isso, o filho da puta tá com outro cara. Ele vai me pagar”, murmurou consigo. Os olhos vermelhos ainda ficaram mais irritados e sombrios.
Depois da aula on-line logo cedo, a única daquela manhã de segunda-feira, Robson sentou na varanda de sua casa, tirou a máscara de proteção e ficou olhando o jardim descuidado, cheio de mato e cujo único toque de beleza vinha de pequenas flores silvestres lilás que tinham brotado depois dos últimos dias de chuva. Colocou os fones de ouvido e ficou ouvindo a playlist que tinha feito uma semana antes com canções de Liniker, Pablo Vittar, Linn da Quebrada e ficou pensando nos acontecimentos do dia anterior que culminaram com o rompimento com Lucas. Sentia-se entre aliviado e pesaroso. Seus sentimentos pelo repórter do Diario Popular sempre foram ambíguos. Eles variavam de momentos de paixão obsessiva a dias em que uma espécie de apatia o dominava. Uma coisa, porém, ele tinha certeza: o sexo os unia e os levava a permanecerem juntos. Negro, morando na periferia, a forte atração física que o arrastava para os braços de Lucas, um homem branco, de classe média, um pouco mais velho do que ele, gay não assumido, o deixava inquieto. Quando o conheceu se encantou rapidamente com o charme sedutor da conversa inteligente e ágil dele. Fascinou-o a forma como ele o inflamava com elogios à sua beleza, a textura da sua pele, e como entregava, sem nenhum pudor, seu corpo a todos os prazeres que dois homens podem se dar um ao outro. Robson lembrou da primeira vez em que ficaram juntos e como viveu algo que julgava um clichê, mas acontecera: paixão à primeira vista. Robson havia saído de uma relação que o deixara muito mal e Lucas o acolheu com doçura, de uma forma intensa e envolvente como ninguém nunca tinha demonstrado para ele. Com o tempo, porém, percebeu que a relação com Lucas seria um amor apenas do agora. Seu parceiro, o homem que gemia enquanto sussurrava “eu sou todo seu” ao abrir seu corpo para recebe-lo, depois de se despedirem, ao dobrar a esquina entrava numa dimensão onde Robson não existia.
Robson voltou para o seu quarto. Ouviu as vozes de sua mãe e de seu irmão vindas do quintal, mas ele não estava para conversa. Enquanto arrumava seus livros espalhados sobre o pequeno birô de segunda mão que usava para estudar, Robson lembrou como ele sempre cedera aos caprichos do amante. Os dias e horas para se verem determinados por Lucas de acordo com sua conveniência, os encontros apenas em motéis localizados em bairros afastados, a não existência de uma vida social a dois, sem viagens, sem cinemas, sem uma cervejinha no bar como qualquer casal, era o que lhe restava. No início, ele não se importou muito, as horas passadas com Lucas eram intensas, trepavam até três vezes numa tarde. Conversavam sobre tantas coisas, sobre o universo, sobre animais selvagens, sobre filmes de super-heróis, fumavam maconha, contavam histórias de suas vidas e jogavam games… até começarem a surgir as pandemias e com elas as quarentenas. A primeira foi a do Covid-19, depois veio outra surgida por causa de um vírus surgido na Indonésia e agora mais uma vez estavam em quarentena. Com os sucessivos lockdowns, os toques de recolher, eles passaram a se ver cada vez menos. Robson sentou na sua cama e começou a chorar. Na sua mente desfilaram os encontros carregados de tensão, com Lucas cada vez mais amargo, reclamando da vida insana que levava como repórter, mas também os gestos de companheirismo quando ele perdeu o emprego por causa das demissões em massa e o amante se ofereceu para continuar pagando o seu curso de design de moda. A deterioração da relação nas últimas semanas, no entanto, tinha deixado Robson cada vez mais deprimido. Quase não podiam trocar mensagens ou falarem por telefone porque Lucas estava sempre com alguém do lado que não podia saber de sua existência. E como se não bastasse Lucas estava cada vez mais obcecado com a ideia que ele teria outras pessoas em sua vida. Logo ele, que mal saia de casa. A cada raro encontro que conseguiam ter Lucas fazia insinuações levianas de que ele o trairia. “Se você me trocar por outro, eu te mato, viu”, dizia isso rindo e o beijava. “Eu te amo, seu bobo, nunca vou fazer isso com você”.
Seus olhos verdes, antes brilhantes e vivos, estavam agora opacos e injetados de um vermelho escuro, como se as imagens de corpos crivados de balas, eviscerados, putrefatos estivessem encharcando-os de sangue. Sua mente atormentada só enxergava a morte no horizonte.
Robson, porém, saia desses encontros com medo. Em conversa com os poucos amigos que tinha, Robson, aos poucos, foi tomando consciência da relação tóxica ao qual se submetia. Para ele, ser gay não era um problema. Sua família sabia e o aceitava. Negro e da periferia, sabia como era ser discriminado. Aos poucos começou a se perguntar se seria mesmo apenas pelo fato de não poder se assumir como gay que Lucas não o assumia plenamente. Na primeira vez que Robson tocou no assunto, Lucas desviou a conversa para os seus eternos dramas da vida de jornalista cobrindo a violência urbana. Pelo semblante transtornado de Lucas, a barba malfeita, o cabelo desalinhado, Robson teve pena e calou-se. Certa vez, ao ler uma matéria escrita pelo amante, o questionou sobre como os jornais tratavam as pessoas pobres, moradoras da periferia. Ele achara o tratamento dado por Lucas ao assunto preconceituoso. O repórter defendeu seu ponto de vista com uma frase que chocou Robson: “essa travesti era um bandido teve o que mereceu” e encerrou a conversa. Nas tentativas seguintes, Lucas começou a demonstrar irritação. Na manhã do sábado, última vez que se viram antes do rompimento, enquanto se vestiam, Robson foi direto: “você tem vergonha de sair comigo por eu ser gay ou por eu ser negro?” Lucas retrucou de forma rude, quase gritando: “Por que isso agora? Faz cinco anos que estamos juntos e isso nunca foi um problema!” Ao perceber que Robson se magoara, mudou o tom de voz. “Venha cá meu amor, você é a coisa mais importante da minha vida, você não imagina o que eu faço para ficar essas horas contigo”, disse-lhe dando-lhe beijos na sua nuca. No dia seguinte, Robson foi até o Diario Popular. Estava angustiado com tudo que estava acontecendo entre eles e queria falar isso para o amante. Sabendo a hora em que Lucas saia da redação dos plantões do domingo, foi espera-lo, pela primeira vez desde que se conheceram, na entrada principal do edifício. Lucas estava com um colega. Quando Robson se aproximou, ele virou o rosto, puxou o amigo pelo braço e seguiram na direção oposta. As crises, as submissões consentidas, os beijos, as gozadas, as dúvidas, os perdões, todas as coisas boas e ruins vivenciadas com Lucas sumiram da vida de Robson em um segundo. Ao chegar em casa, falou com a mãe, trancou-se no quarto e esperou a noite chegar. Um pouco antes das dez, fez uma videochamada para Lucas. Em poucos minutos tudo que estava engasgado na alma dele foi lançado para fora. “Parasita sexual, manipulador, racista, bicha enrustida, covarde, aproveitador….”. A lista de impropérios foi enorme finalizada com um “por favor, some da minha vida, me esquece”. Em seguida, bloqueou o número e os perfis de Lucas nas redes sociais.
Lucas viu o sol nascer e continuou deitado no chão da sala. Ligou para Robson e viu que o seu número estava bloqueado. Por volta das dez da manhã, vestiu-se, pegou uma arma na gaveta da cômoda. Carregou-a e colocou na cintura, vestiu um paletó que estava jogado no cabide, pegou as chaves do carro e saiu. Com a nova recomendação de permanência em casa, mesmo numa segunda-feira, àquela hora do dia, as ruas estavam praticamente desertas. Atravessou a cidade ruminando o que diria a Robson. No trajeto, se reconciliou interiormente com o rapaz, prometeu que diria a Robson que seria diferente dali pra frente, pediria para ele ter paciência e o convenceria que não tinha nada contra gays, contra negros e que entendia como devia ser difícil para ele amar uma pessoa mal resolvida… Quando cruzou o rio pela ponte que leva ao bairro onde Robson mora, Lucas lembrou de uma discussão que tiveram ali, quando o rapaz tinha ido passar uns dias na praia com um amigo. Voltou a sentir raiva. Não teria conversa. Se ele não era mais seu, também não seria de mais ninguém. Ia mostrar que não se destrói a vida de uma pessoa e fica por isso mesmo. Tanto amor que ele deu, tudo o que tinha feito por ele e agora recebia como troco só xingamentos, tratado como se ele fosse um monstro e sendo jogado no lixo como algo imprestável. Robson ia ter que se explicar.
Lucas chegou na frente da casa de Robson, respirou fundo, apalpou a arma e saiu do carro. Aproximou-se do portão do jardim e apertou a companhia. Tocou três vezes seguidas. Estava nervoso. O suor escorria pela sua nuca. Na quarta, ouviu a porta abrir e dela sair um homem negro alto, usando máscara. Lucas estremeceu, demorou um pouco para ele reconhecer Aloísio, agente de polícia que trabalhava na Secretaria de Segurança e o ajudava sempre quando precisava de informações sobre casos que estava cobrindo. “Oi Lucas, tá perdido meu chapa?” Lucas ficou desnorteado, respirou forte e perguntou: “O que você está fazendo aqui?”. “Ô rapaz, é a casa da minha mãe. Ela mora aqui com meu irmão mais novo. Posso te ajudar em alguma coisa?” Lucas avistou Robson se aproximando por trás de Aloísio. Suas mãos ficaram trêmulas, achou que ia desmaiar. “Pode deixar, eu falo com ele”, disse Robson ao irmão. Colocou uma máscara vermelha, atravessou o jardim malcuidado e ficou frente a frente com Lucas. Percebeu o revólver na cintura do ex-amante, mas não se intimidou. “Desculpe, por ontem, eu não devia ter sido tão grosso e agressivo com você. Mas por favor, segue tua vida. Você é uma pessoa legal, vai arranjar alguém pra ficar contigo”. Sem encarar Robson, olhando de soslaio para Aloísio que continuava em pé no terraço, Lucas balbuciou: “Não é alguém que eu quero. Eu quero você”. “Você já me teve por cinco anos. Agora eu preciso me ter. Beleza Lucas? Agora vá embora por favor”. Lucas arriou os ombros, deu as costas para Robson e começou a caminhar em direção ao carro. Robson se condoeu com o visível transtorno de Lucas e esboçou um gesto de gentileza. “Lucas! Não tenho raiva de você. Cuide-se viu, você tá andando sem máscara”. Lucas deu mais dois passos sacou o revólver, apontou para a própria cabeça e efetuou o disparo. Pessoas apareceram nas janelas assustadas. Robson não teve nenhuma reação, sentiu um vácuo no peito e chorou em silêncio. Mais uma morte iria engrossar as estatísticas da violência urbana naquele mês.
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