20241211 Polacas

“As Polacas”: melodrama de João Jardim nasce datado e desperdiça eficiência do elenco

Um filme cuja pesada mão do diretor, homem, é sentida em narrativa essencialmente feminina

“As Polacas”: melodrama de João Jardim nasce datado e desperdiça eficiência do elenco
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As Polacas
João Jardim
BRA, 2024. Drama, 2h05. Distribuição: Imagem Filmes
Com Valentina Herszage, Caco Ciocler, Dora Freind


Valentina Herszage, 26 anos de idade, é uma das atrizes mais notáveis da nova geração brasileira. Perceptível desde sua estreia em longas-metragens, no interessante Mate-me Por Favor, às participações em obras mais recentes como Ainda Estou Aqui e O Mensageiro, a entrega dramática com a qual reveste seus personagens é tocante e nos leva a antever uma carreira promissora. Curioso por acompanhar os passos artísticos dados pela atriz, não poderia deixar de assistir ao seu mais novo trabalho, As Polacas (2024), filme de época dirigido por João Jardim que chega às salas de cinema do país. 

Livremente inspirado nos livros El Infierno Prometido, de Elsa Drucaroff, e La Polaca, de Myrtha Schalom, o longa-metragem se baseia em histórias verídicas para narrar as desventuras de Rebeca (Herszage). Judia em fuga da Polônia durante a Primeira Guerra Mundial, ela vem com o filho ao Brasil na esperança de reencontrar o marido Joseph. Logo descobre o falecimento do companheiro; vê-se então forasteira e completamente sem perspectiva no país estrangeiro. Seu caminho cruza, então, com o de Tzvi (Caco Ciocler), dono de bordel envolvido com o tráfico de mulheres que faz de Rebeca sua mais nova vítima. 

Módico na ambientação do Rio de Janeiro do início do século XX, o filme opta por planos com pouca profundidade de campo; observem como a câmera de João Jardim tende a enquadrar o rosto, a nuca, dos personagens, mesmo nas sequências externas em movimento; a estratégia é recorrente e compreensível em filmes de época cuja reconstrução geográfica é limitada (por questões orçamentais ou decisões do próprio cineasta). De qualquer forma, a proximidade da câmera aos personagens até funciona narrativamente, pois fundamenta a percepção de sufocamento e de ausência de liberdade da protagonista. Algo que, com mais refinamento, Kirill Serebrennikov fez em A Esposa de Tchaikovsky.

Numa busca meio atabalhoada de localizar o espectador no período histórico, o diretor polui a montagem com a inserção, aos solavancos, de imagens de arquivo antiquíssimas que pouco agregam à composição narrativa. É visível o esforço da direção de fotografia, assinada por Louise Botkay, em materializar o senso de ameaça e angústia, através do jogo de luz e sombra que absorvem os personagens. O problema reside, principalmente, em uma trama frágil e excessivamente esquemática, com o cheiro de ferrugem das obras que já nascem datadas.

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Longa tem estratégias narrativas problemáticas. (Foto: Divulgação).

Com a aparência de cena extraída de novela televisiva do início dos anos 2000, a sequência na qual Tzvi leva Rebeca à rua para mostrar a miséria (e tenta convencê-la que, em comparação, sua situação no bordel é quase um privilégio) beira o intragável. A superficialidade do texto só não incomoda mais que a inautenticidade da mise-en-scène, numa representação da vulnerabilidade social tão fake quanto ofensiva. O elenco faz o possível e entrega interpretações eficientes. Gosto especialmente da construção de Caco Ciocler, na pele do asqueroso Tzvi, e de Dora Freind, que imprime bastante intensidade como Deborah. 

E claro, Valentina Herszage mantém o nível com mais uma performance segura, mesclando momentos de tensões reprimidas a outros de maior explosão. Entretanto, é lamentável notar a mão pesada do diretor João Jardim, homem, ao filmar cenas de estupros (são duas) sem qualquer sensibilidade. Assunto amplamente discutido nas reflexões sobre a fetichização da violência sexual no cinema (principalmente depois da imperdoável cena de Irreversível, de Gaspar Noé), a questão-gatilho é mostrada por Jardim desmoderadamente, com a câmera bem próxima do rosto da personagem que sofre a agressão.

O resultado é mais uma produção anacrônica por natureza, com o verniz aparentemente progressista de filme aliado à causa do empoderamento feminino. Com um tema tão importante em mãos (o das mulheres europeias vítimas de tráfico sexual no Brasil), o diretor deteriora a própria obra diante de tantas estratégias narrativas problemáticas. Impossível não pensar como As Polacas seria, se dirigida por uma cineasta mulher.

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