Ainda Estou Aqui
Walter Salles
BRA, 2024. 2h17. Drama. Distribuição: Sony Pictures
Com Fernanda Torres, Selton Mello, Humberto Carrão, Dan Stulbach
Simbólico o momento do lançamento de Ainda Estou Aqui nos cinemas brasileiros e do mundo. Há exatos 60 anos, o país vivia a eclosão do golpe militar que, ao longo de duas décadas, ceifaria a vida de milhares de cidadãos. Aos sobreviventes, direta ou indiretamente envolvidos com a defesa da democracia, marcas profundas difíceis de expurgar. No já aclamado filme de Walter Salles, que estreia oficialmente no país nesta quinta-feira (7), o sombrio período histórico é apresentado através das subjetividades dos familiares de Rubens Paiva, ex-deputado preso, torturado e morto pelo Estado em 1971.
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Eunice Paiva (Fernanda Torres) é o pilar narrativo do drama familiar compartilhado com seus cinco filhos, outros parentes e amigos próximos. Acompanhamos a história a partir dos dias que antecederam a prisão de Rubens; a introdução, construída sem pressa, é eficiente ao costurar a relação harmoniosa e confidente daquela família. Mesmo sem trazer novidades sobre o inescrupuloso comportamento do exército à época, o filme de Walter Salles é notável na arquitetura cênica do Rio de Janeiro da década de 1970. A direção de arte de Carlos Conti é irrepreensível, desde a ambientação das ruas da cidade, até a decoração do casarão da família Paiva.
Salles reitera a habitual habilidade com que administra os itinerários narrativos e estéticos de um filme. Aqui, numa obra inteiramente preenchida pelo conceito de memória, o cineasta soluciona muito bem as maneiras pelas quais levar o espectador para aquele universo. Percebam como o uso das filmagens em super 8 tem dupla função: além de reforçar a preservação dos laços familiares dos personagens, é uma decisão tecnicamente eficaz e condizente com a perspectiva de imagens do passado. Linda a cena na qual a família se reúne para assistir às gravações de Vera (Valentina Herszage), enquanto leem a carta enviada por ela de Londres.
O cotidiano alegre da família Paiva, contextualizado por encontros regados a música e dança, é brutalmente interrompido um dia por oficiais do exército. A partir daí, Ainda Estou Aqui mergulha seus personagens numa constante penumbra; a belíssima fotografia de Adrian Teijido corrobora com a noção de obscuridade que oprime aquelas pessoas. Filmada em 35mm, a obra é de um refinamento visual extraordinário, como costumam ser as produções assinadas por Walter Salles.
As fotografias impressas de Rubens Paiva e família – única fonte de arquivo imagético disponível à equipe do filme, já que não existe gravações em vídeo de Paiva, apenas um depoimento em áudio – têm igualmente relevância dramática no filme (e é tocante rever as mesmas imagens, ao fim da projeção, e perceber como a obra foi fidedigna na caracterização dos personagens).
Selton Mello, Camila Márdila, Humberto Carrão, Dan Stulbach, as jovens atrizes que interpretam as irmãs de Marcelo Rubens Paiva na primeira parte do filme; todos estão em excelente harmonia performática e empenham-se em atuações excelentes. Mas é Fernanda Torres a força transcendente do filme. O que mais impressiona é que Eunice Paiva não era uma mulher de temperamento exacerbado; portanto, a atuação de Fernanda flutua magistralmente entre a introspecção e alguns lampejos de sofrimento mais vocais, agudos (em todo o filme, a personagem se descontrola apenas uma vez, ao gritar com militares à paisana dentro de um carro). A Eunice de Fernanda Torres é o âmago do longa-metragem; por mais que Ainda Estou Aqui seja um estudo da família após o desaparecimento do pai, aquela mãe-fortaleza é a energia vital da trama.
Dividido em três momentos específicos da vida da família (1971, 1996 e 2014), a obra talvez sumariza alguns episódios da política brasileira de forma rápida, superficial demais. Não esqueçamos que, apesar de todo o sofrimento, a família Paiva continha os privilégios da classe alta carioca; por focar tanto nos dramas familiares, a narrativa deixa de se aprofundar em questões/camada sociais que, se mencionadas, possivelmente elevariam ainda mais a capilaridade das reflexões propostas.
Ainda assim, já é indiscutivelmente um importante documento audiovisual brasileiro sobre o nefasto período ditatorial, ao lado de obras contundentes como Batismo de Sangue (2006), O Ano Que Meus Pais Saíram de Férias (2006) e Marighella (2019), para ficar no campo apenas das produções ficcionalizadas. Agraciado com uma breve e estupenda participação especial de Fernanda Montenegro, Ainda Estou Aqui é uma história de admirável sensibilidade, magistralmente contada por um dos grandes cineastas do nosso país.
Com ou sem indicação ao Oscar, uma obra cujo valor histórico é fundamental para o respeito à memória de todos que foram mutilados pelo autoritarismo brasileiro. Em tempos de revisionismos criminosos e desinformação enquanto arma discursiva, o filme de Walter Salles é um bálsamo de lucidez e honestidade com a História.
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