Adeus, Capitão
Vincent Carelli e Tatiane Almeida
BRA, 2023. 2h55, Documentário. Embaúba Filmes
No documentário Martírio, de 2016, o cineasta Vincent Carelli, ao lado de Ernesto de Carvalho e Tatiana Almeida, acompanhou os Guarani Kaiowás – um dos grupos indígenas mais populosos do Brasil – em sua luta constante para manter suas terras ameaçadas por latifundiários, pecuaristas e fazendeiros no Centro-Oeste do país. Em Adeus, Capitão (2022), o seu novo trabalho, atualmente em cartaz nos cinemas, Carelli volta agora seu olhar para o povo indígena Gavião, concentrando sua atenção ao líder do grupo, o “Capitão” Krohokrenhum, que conduziu um movimento de reconstrução da memória de seu povo no sul do estado do Pará.
Carelli é antropólogo, indigenista, documentarista e um dos criadores do projeto Vídeo nas Aldeias, com sede em Olinda, cujo objetivo é apoiar a luta dos povos originários para fortalecer seus patrimônios territoriais e culturais por meio de recursos audiovisuais. Desde 1987, o Vídeo nas Aldeias tem formado cineastas indígenas de modo a possibilitar que eles se apropriem de suas imagens e falas, ou seja, que passem de objetos de observação a sujeitos de seus próprios discursos. A convivência, todos esses anos, com os povos nativos, levou Carelli a estabelecer relações profundas com esses grupos e a amizade com Krohokrenhum é o fio condutor da narrativa de Adeus, Capitão.
O líder indígena faleceu em 2016 aos noventa anos e o ponto de partida do documentário, que tem também Tatiana Almeida como codiretora e montadora, é a visita que Carelli faz aos parentes do “Capitão” levando fotos e vídeos resgatados pelo cineasta quando o grupo Gavião foi contatado, no início dos anos setenta, e quase desapareceu por conta das doenças levadas pelos homens brancos. Os sobreviventes dessa tragédia, a partir de então, viveram uma série de dificuldades como, aliás, todos os povos indígenas do território brasileiro.
O filme mescla resgate histórico com um retrato afetivo da convivência do cineasta com o líder dos Gavião. Mas, acima de tudo, nos traz uma acurada reflexão sobre o processo de repressão protagonizado pelos não-indígenas, tanto do ponto de vista da violenta opressão física e material, quanto do processo de aculturação que destrói a tradição e a memória desses povos. Carelli, usando imagens antigas e depoimentos de Krohokrenhum, vai reconstruindo a trajetória dos indígenas que foram transferidos para um castanhal na região de Marabá, onde sofreram abusos e foram obrigados a exercer trabalho escravo sob tutela da Funai.
Uma rebelião nos anos 1980 levaram os Gavião a assumir a gestão do castanhal e conquistarem a autonomia financeira. É nesse momento que Krohokrenhum inicia sua luta para recuperar as tradições de seu grupo, desde o ensino da língua para os jovens da comunidade quanto o reaprendizado de danças, cantigas, festas e jogos. A importância de Adeus, Capitão como documento audiovisual é indiscutível por nos revelar de forma contundente o esfacelamento e descaracterização de uma identidade que não poderá mais ser recuperada em sua totalidade.
Carelli e Tatiana costuram os acontecimentos e mostram como, com o passar dos anos, o povo Gavião foi sendo influenciado pelos “cupen” (como os indígenas do povo Gavião chamam os homens brancos) e sua cultura, com alguns, inclusive não querendo retornar a vida nas aldeias, e outros se tornando evangélicos pelas mãos de missionários. O esforço de Krohokrenhum de restaurar as tradições dos Gavião é comovente, mas, ao mesmo tempo nos mostra um mundo em desencantamento, cuja rendição completa só poderá ser evitada se conseguirmos barrar a violência e a sanha assassina dos que desejam destruir o que restou dos povos originários.
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