“Quadrinhos com sangue nos zóio”. É esse o mote que estampa a capa da Mil Grau, antologia que chega com a proposta de resgatar a essência dos gibis dos anos 1980 – um tempo em que os quadrinhos costumavam ser artigos acessíveis, baratos e podiam ser facilmente encontrados em qualquer banca; bastava andar até a esquina mais próxima. Organizada pelos quadrinistas Márcio Jr. e João Pinheiro e publicada pela MMarte Editora, a coletânea faz sua estreia com a edição zero, volume que serve como uma espécie de prévia para os próximos números.
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Em entrevista à Revista O Grito!, o editor Márcio Jr. conta que a publicação nasce inspirada em títulos que marcaram sua adolescência como Circo, Chiclete com Banana e Animal. “Todas eram revistas mix compostas por vários autores, mas o que era interessante é que a maioria delas trazia histórias curtas ou então histórias seriadas que funcionavam como capítulos. E esse tipo de narrativa é uma coisa muito brasileira, que se perdeu com o fim das bancas de revista, advento dos quadrinhos em livrarias e das graphic novels”, detalha.
Sempre carregando discursos e posicionamentos firmes em relação ao mundo e remetendo a uma identidade única, esses títulos sempre acabavam circulando de mão em mão onde quer que estivessem. “Na sala de aula da minha adolescência, não era todo mundo que lia quadrinho, mas todo mundo lia Chiclete com Banana. Aquela revista passava de mão em mão. As pessoas esperavam para ver aquilo, para mostrar para as outras. Então, essa é a ideia de um gibi, e não de ser aquele objeto para exibir na estante”, afirma. “Porque você sabia o tipo de quadrinho que você ia encontrar ali.“
Seguindo esses moldes, Mil Grau chega como um gibi “de formato simples, mas de conteúdo valioso e acessível” nas palavras de Márcio. Com lombada grampeada e miolo preto e branco, o que foge à lógica atual do mercado editorial com edições elaboradas em capa dura e impressão colorida, o título reúne, neste primeiro volume, nomes de peso da produção autoral brasileira como Álvaro Maia, Wagner William, André Toral, Sirlene Barbosa, Gabriel Renner, Marcelo D’Salete, Diox e Allan Matias.
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“A minha ideia era ter um time relativamente fixo. Um núcleo central de artistas, que a gente sabe que vai estar presente ali nas edições, mas havendo também um processo de rotatividade que inclua outros nomes”, explica. “Já a ideia de João [Pinheiro] era de quadrinhos que fossem da quebrada. Um quadrinho no qual tanto os autores quanto as histórias remetessem a uma coisa mais brasileira, de um Brasil mais real, digamos assim, e que saísse um pouco desse universo nerd, que não diz nada para a gente.”
Mil Grau, um quadrinho que discute o Brasil
Lançada na última semana em São Paulo durante a PerifaCon, a convenção nerd das favelas, a coletânea privilegia narrativas centradas nas periferias que dialogam com questões políticas e sociais contemporâneas, indo da fome nos grandes centros urbanos até a invasão ilegal do garimpo em terras indígenas. “Porque o quadrinho ‘com sangue nos zóio’ é um tipo de quadrinho que trata do Brasil. E o Brasil é essa loucura. É muito diverso, mas muito desigual e violento, uma grande ferida a céu aberto”, define ele.
Porém, isso não quer dizer que o título venha como uma plataforma que se limite à abordagem desses temas; muito pelo contrário. “A Mil Grau não tem preocupação nenhuma com proselitismo, não tem obrigação nenhuma em ser panfletária. A gente não usa os quadrinhos como veículo para dar tal recado ou passar tal mensagem para os leitores”, frisa Márcio. “A gente está produzindo um objeto que é artístico e estético e, como ele está entranhado no mundo, ele vai discutir o mundo e o nosso mundo é o Brasil.”
Um exemplo disso é que dentre os trabalhos que compõem este volume zero está “Metralha”, assinado por Márcio Jr. em coautoria com Gabriel Renner, um conto biográfico que narra o encontro do cantor Nelson Gonçalves com Madame Satã na Lapa, bairro da boemia carioca. “Apesar de não ter esse cunho mais social, é uma história de uma figura que é muito popular no Brasil e que também traduz toda essa coisa que a gente pode chamar de brasilidade”, complementa.
Ele adianta que o episódio faz parte de uma biografia em quadrinhos do cantor, que deve sair no próximo ano, e a ideia é que mais um capítulo seja publicado na edição número um da antologia. “Porque essas revistas antigas tinham essa característica. Você ia acompanhando uma série em capítulos, aí depois, ao final de um certo tempo, essas histórias eram compiladas e saíam num álbum. Então, isso é também um outro resgate que a gente quer fazer”, pontua.
O que esperar…
Contudo, ajustes ainda devem ser feitos até a próxima edição. “O projeto não está 100%, mas, em contrapartida, a revista chegou muito próximo daquilo que a gente imagina que ela vá ser durante a elaboração do número zero”, comenta.
Entre os próximos passos está ampliar o número de mulheres na composição da coletânea (que, neste volume, traz apenas Sirlene Barbosa, nos quadrinhos, e Márcia Deretti, no trabalho editorial), desenvolver um suplemento para a revista (à moda do JAM, que acompanhava a Chiclete com Banana, ou do Mau, que vinha com a Animal) e até mesmo criar uma seção de cartas, um espaço especial de bate-papo com os leitores.
“Tanto eu, quanto o João, e todo mundo envolvido, estamos fazendo a revista que gostaríamos de ler. Não tem ninguém fazendo uma revista como a Mil Grau. Essa é uma revista que eu acho que gente da minha geração gostaria de ler, mas que também gente de gerações mais novas deve ler e tentar ver se tem uma liga com esse tipo de material”, aponta ele, que espera publicar o número um ainda em 2023, mantendo uma regularidade de três a quatro edições por ano.
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Consuella, o filme que lançamos em 2023
2023 foi bem especial pra gente! Lançamos o curta Consuella, dirigido por Alexandre Figueirôa, editor-executivo da Revista O Grito!. O filme resgata a história de uma importante personalidade artística do Recife, que viveu seu auge nos anos 1970-80 e que abriu portas para diferentes artistas LGBTQIA+. O curta percorreu o circuito de festivais e teve uma première concorrida no Teatro do Parque, com a presença de pessoas que conviveram com Consuella, além da equipe que produziu a obra. Trata-se de uma importante memória da excelência trans, de alguém que ousou peitar as convenções tradicionais e conservadoras de sua época.