Ao contrário dos outros milhões de mortais, eu nunca amei os Beatles e os Rolling Stones. Minha atenção sempre esteve centrada em duas personalidades que estavam ligadas a esse universo pop. O que eu amava, de verdade, era a relação de Yoko Ono e John Lennon.
Como toda criança e adolescente dos anos 1960 e 70, as fotos marcantes do casal deitado na cama, as mensagens de paz e amor, a música “Imagine”, as atitudes feministas de Yoko, todo o burburinho em torno da união da japonesa com o ex-Beatle, me fascinavam. Sem falar na morte trágica de Lennon, que encheu a mim e ao mundo de comoção, nos fazendo pensar que o sonho, de fato, tinha acabado.
Somente com os anos fui entendendo o inestimável legado de Yoko Ono: a sua importância como artista plástica e música de vanguarda, o seu papel no empoderamento feminino, sua defesa ao meio ambiente e aos direitos humanos, sua campanha contra a Guerra do Vietnã, temas que, certamente, não constavam na pauta dos Beatles. Yoko sempre foi uma mulher à frente de seu tempo. E a convivência com John o tornou uma pessoa mais completa e sintonizada com as pautas da época. Yoko, para mim, na verdade, sempre esteve além dos Beatles.
Quando em 1998 tive a oportunidade de entrevistá-la, durante uma exposição que ela realizou no Teatro Nacional, em Brasília, (cidade onde à época eu morava e trabalhava), já tinha consciência da importância da artista para a arte contemporânea e da sua multiplicidade de ações e trabalhos em prol de várias causas.
Após a coletiva da exposição Árvores do Desejo para o Brasil – mostrando seu olhar visionário sobre a destruição dos biomas brasileiros –, acompanhei-a durante horas pela capital, e pude ver de perto a força das ideias, a energia criativa e a personalidade zen que tornam Yoko Ono uma mulher única, sintonizada com sua época e espaço.
Síndrome de “Culpe a Yoko Ono”
Desde então me questiono: com base em quê, milhões de pessoas no Planeta embarcaram na Síndrome de “Culpe a Yoko Ono”? O que fez com que essa mulher genial, que ajudou Lennon a tornar-se o artista maduro que conhecemos, passasse a ser rechaçada e taxada como a bruxa que separou os Beatles?
A jornalista Helena Vitorino postou uma matéria no site Medium, que levanta a seguinte questão: “Se o próprio Lennon, que era quem dormia e acordava com ela, deixou mais do que claro que foi o talento e a ousadia artística de Yoko Ono que o conquistaram, porque ainda insistem em etiquetá-la como “A megera da separação dos Beatles?”
Hoje, o mundo sabe que antes da chegada de Yoko Ono na vida de John (em 1967), em 1966, os Beatles já eram quatro indivíduos preocupados em desenvolver seus projetos pessoais. O crítico musical José Telles observa que desde essa data, os discos eram quase individuais, com um dos participantes se sobressaindo sempre à cada gravação.
Telles ressalta, também, que Yoko Ono ajudou John a tornar-se um homem mais maduro e respeitoso com as mulheres. “Ele era estabanado, bipolar, cheio de problemas. Uma vez, uma jornalista nos EUA perguntou-lhe por que ele traia sua mulher e recebeu um tapa de John, que fez isso várias vezes contra outras mulheres”.
Yoko, portanto, foi a responsável por tornar o ex-Beatle um homem que passou a respeitar o sexo oposto. E a virar o humanista que o tornou um mito além da banda. Ele recorda, ainda, que muito antes da banda se tornar famosa, a japonesa já era uma artista de vanguarda, respeitada e conceituada em Nova York. E que sequer conhecia os Beatles.
A resposta, portanto, para explicar a explosão da Síndrome mundial de Culpe Yoko é clara: xenofobia e machismo. Visão respaldada pela crítica Débora Nascimento. “Ela (Yoko) foi vítima de machismo, xenofobia e ignorância, principalmente por parte dos fãs dos Beatles. Ninguém sabia ou queria saber da importância de Yoko Ono.
Havia uma ideia de que ela estava pegando carona na fama e no dinheiro de John, quando, na realidade, ela não precisava de nenhuma das duas coisas a partir de marido algum. Outro preconceito tem a ver com a xenofobia aos japoneses, devido à posição do Japão na Segunda Guerra Mundial. Mas é preciso destacar que ela sempre teve o respeito dos demais integrantes da banda”, explica a especialista. Aliás, foi com Yoko, que John produziu a música que a crítica considera mais importante na carreira do cantor: “Imagine”.
Obra segue influente
Para quem desconhece a vida de Yoko, ela transitou entre o luxo de uma família rica e a fome após os bombardeios da Segunda Guerra Mundial. Casou-se contra vontade dos pais aos 23 anos e 12 meses depois se divorciou. Casou novamente e teve uma filha, Kyoko, cujo pai a sequestrou. Ela só conseguiu revê-la quando a garota tinha 35 anos. No final dos anos 1950, fez parcerias com músicos experimentais como John Cage. Nas décadas seguintes, gravou dezenas de discos e realizou 16 filmes.
Em 1963, produziu sua obra de arte conceitual mais polêmica e conhecida: Cut Piece, onde, além de explorar a relação entre espectador e artista, passa a propor reflexões relacionadas à forma como as mulheres são tratadas nas mais distintas esferas da sociedade: sentada imóvel no palco do Carnegie Hall, em Nova York, instigava os espectadores a cortarem suas roupas com uma tesoura, até ficar com uma única peça íntima. Esse espetáculo influenciou centenas de artistas pelo mundo.
Em 2014, aos 81 anos, lançou o aclamado Between the Sky and My Head, que angariou aplausos e uma série de shows com a participação de artistas como Eric Clapton, Lady Gaga, Iggy Pop, entre outros. Hoje, com 90 anos continua ativa. Ela jamais precisou dos Beatles nem de John para manter sua luz e criatividade. Por tudo isso, continuo sendo a garota que ama Yoko.