Medusa
Anita Rocha da Silveira
Brasil, 2021, 2h07. Distribuição: Vitrine Filmes
Com Mari Oliveira, Lara Tremouroux e Joana Medeiros
Em cartaz nos cinemas
Com sua cabeleira cheia de serpentes e olhar petrificante, Medusa é uma figura feminina monstruosa. Ela evoca todo o mal e sadicamente aniquila todos aqueles que ousam cruzar seu caminho. Megera, vadia e histérica são adjetivos que também complementam muito bem sua descrição. Afinal, é essa a imagem que costuma preencher nossa mente quando ouvimos o nome da mais famosa górgona da mitologia grega. Ao menos foi assim que sua história resistiu ao tempo e chegou até nós.
Mas há um detalhe importante, que mesmo hoje permanece oculto e pouco difundido. Medusa foi uma mulher. Uma mulher bela e vaidosa, que, no entanto, foi violentada: primeiro por uma figura masculina, depois por uma figura feminina. Até então sacerdotisa da deusa virgem, Atena, ela foi abusada sexualmente pelo deus dos mares, Poseidon. Furiosa com a profanação do seu templo, Atena culpou e puniu Medusa, transformando-a no monstro que até hoje povoa nosso imaginário.
A construção desse mito, entoada ao longo dos séculos por vozes masculinas, é nada mais do que algo que até hoje lamentavelmente testemunhamos: a demonização e culpabilização da mulher vítima de algum tipo de violência. Mas, felizmente, esse capítulo tem sido cada vez mais apropriado por vozes femininas e diversas, que buscam desconstruir e ressignificar essa figura mitológica.
Seguindo esse caminho a diretora Anita Rocha da Silveira faz a junção entre o mito grego e a realidade brasileira em seu novo longa-metragem, que leva o nome da górgona. O resultado é uma obra capaz de lançar um olhar aguçado sobre os vários papéis das mulheres num país tomado pelo fundamentalismo religioso.
Na trama, acompanhamos a protagonista Mariana, interpretada pela atriz Mari Oliveira, uma bela jovem que, ao lado de suas amigas, se esforça para permanecer fiel aos princípios da Igreja e manter a aparência do que considera um modelo de “mulher perfeita”. Além de vigiar e controlar suas próprias vidas e corpos, ela e suas colegas, chamadas de As Preciosas do Altar, costumam sair às noites, com seus rostos cobertos por máscaras, para caçar e punir mulheres que consideram promíscuas e pecaminosas.
A partir disso, a diretora e roteirista nos imerge em uma atmosfera de terror que nada tem de fantástico e de distante à nossa realidade. Pelo contrário, o horror brota do sentimento de familiaridade e proximidade. É a agonia sufocante por saber que o perigo faz parte das nossas vidas em um país sequestrado pelo reacionarismo.
O filme consegue, assim, produzir um retrato fiel da retórica fundamentalista capaz de criar uma verdade absoluta e demonizar todos aqueles que dela não fazem parte. Para as mulheres, o fardo que as acompanha é em dobro. É preciso sustentar o modelo irreal de mulher “bela, recatada e do lar” a todo custo, ainda que isso implique em camuflar sentimentos e marcas de violência. E é por isso que a necessidade de gritar se torna cada vez mais urgente.
Ainda que a narrativa se torne um tanto difusa, Medusa também fascina pela experiência visual e sensorial que proporciona. E convenhamos, depois dos quatro anos que vivemos, assistir na tela mulheres punindo e controlando corpos e comportamentos alheios nos desperta para o fato de que a distopia é o aqui e o agora.