Mulher Rei
Gina Prince-Bythewood
EUA/Canadá, 2022. 16 anos, 2h15
Com Viola Davis, Lashana Lynch e John Boyega
Distribuição: Sony Pictures.
A primeira exibição pública de um produto cinematográfico foi realizada por volta dos anos 1890, pelos conhecidos irmãos franceses Auguste e Louis Lumière, a quem muitos espectadores nomeiam como os grandes criadores da arte de fazer cinema. A história da sétima arte, porém, remete a tempos ainda mais antigos e não pode ser vista como um produto de um inventor apenas. Muitos pesquisadores e estudiosos atuaram de maneira a fomentar a ideia de “imagens que se mexem” com experimentos e resultados de trabalho árduo.
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Assim, ainda que não tenha possuído um criador único e absoluto, o cinema se desenvolveu através dos séculos por pessoas diversas, espalhadas por todas as partes do globo. É preciso notar, porém, que uma característica que une quase que com totalidade os envolvidos nesse processo é o fato deles serem homens brancos.
Como produto de uma indústria majoritariamente formada por homens brancos, é possível notar na história dos filmes uma decisão quase unânime de deixar as mulheres brancas em segundo plano, assim como os homens e mulheres negras, que eram contemplados com personagens ainda menos falantes e/ou importantes para a história.
Com o desenrolar dessa invisibilização que a sociedade e as produtoras sempre trataram as produções de cinema, é, infelizmente, muito incomum filmes que remetem à história da sociedade africana, seus povos diversos, guerreiros e cultura. Buscando quebrar essa falta de representatividade, o novo filme Mulher Rei, da diretora Gina Prince-Bythewood e estrelado pela atriz norte-americana Viola Davis, realiza o desafio de contar uma história que a sociedade parece esconder com veemência.
Inspirado em fatos históricos reais, a narrativa acompanha a jornada da jovem Nawi (Thuso Mbedu) a partir do momento em que ela acaba por entrar no treinamento para se tornar uma guerreira Agojie e, em paralelo, a líder do grupo, Nanisca (Viola Davis), que lidera a unidade de guerreiras do povo Dahomey. Em meio a conflitos pessoais de descobertas internas e a busca pela força, o grupo de mulheres guerreiras mostram o companheirismo e a garra intensa que possuem em seu dever como protetoras do rei Ghezo (John Boyega).
Acompanhando um povo livre na década de 1800, o assunto do tráfico de escravos é um fato que permeia toda a narrativa do longa. Mesmo sem protagonistas que vivenciem essa realidade horrível, a trama deixa claro que, a qualquer momento, seja quem for, aqueles personagens que o espectador está acompanhando poderiam ser capturados e levados para os diversos países que exploravam o trabalho forçado. Como consequência, a realidade mostrada pela obra também evidencia que os reis e poderosos africanos faziam parte desse comércio como forma de se tornarem ainda mais ricos e serem detentores de uma maior quantidade de influência. A vila de Dahomey, no entanto, está iniciando um pensamento mais progressista e o rei deseja pôr um fim a essa prática em meio a um conflito com outra população.
Olhando para o macro, o maior acerto do filme, é o filme em si. É necessário que histórias como essa, protagonizadas por mulheres negras e que acompanham a vida, os sentimentos e a força que elas possuem devem ser contadas e produzidas, de maneira que assistir narrativas com protagonismo negro seja cada vez mais comum. E isso o longa faz muito bem, explorando as personagens em suas dores, medos, anseios e sentimentos plurais que as tornam únicas.
A atuação de Viola Davis também é algo que engrandece o longa como um grande ponto positivo. Além de aplicar toda sua experiência dramática em um filme de ação, em Mulher Rei ela também atua na produção do longa.
Fica nítido no roteiro do filme, porém, a generalidade da obra, que é muito parecida com os filmes de ação e de super-heróis clássicos de produtoras como Marvel Studios e DC. A história se divide bastante entre as pessoas do bem e as pessoas do mal, sem adentrar tanto em questões mais complexas envolvendo o período. Todo o contexto histórico, que poderia trazer nuances à narrativa, acaba muito engessado pelo enquadramento típico do cinema de ação, com sua necessidade constante de movimento, clímax e resoluções rápidas.
Outra questão da obra é a sua previsibilidade. Na narrativa, as histórias seguem de maneira extremamente parecida com a clássica jornada do herói e nenhum dos acontecimentos realmente vem ao espectador como uma surpresa. Em meio aos acontecimentos, a trama se separa um pouco do fio narrativo e busca focar mais nos dramas pessoais de Nanisca e Nawi, e apesar de não ser deslocado, é perceptível uma dificuldade em lidar com essa própria escolha.
O filme é um épico histórico de ação, nas palavras da atriz principal e sim, essas questões estão presentes em sua cinematografia, contudo a história é genérica e, como brasileira, é impossível não destacar o mau gosto dos produtores em escalar atores americanos para interpretar personagens brasileiros, mercadores de escravos. Talvez isso passe despercebido pelo grande público mundial, mas aos espectadores nacionais, é de certa forma constrangedor. Para um filme que se faz tão importante na luta de visibilizar aqueles que são constantemente ignorados, essa escolha foi bastante infeliz.
Apesar disso, a grande importância do filme o torna indispensável no contexto da Hollywood atual. É uma obra que fará meninas negras espalhadas por todo o mundo sentirem o seu poder representado nas grandes telas e isso é algo que já passou da hora de acontecer. É um tipo de entretenimento com propósito e isso, por si só, é bastante poderoso.
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