“É a primeira vez que fiz uma canção nessa urgência, nesse tipo de circunstância, com essas sensações”, revela Adriana Calcanhotto, a respeito da canção “2 de junho”, composta pela cantora, que aborda os reflexos da dor do crime que levou à morte o menino de cinco anos de idade, Miguel Otávio, após cair do 9° andar de um prédio de luxo no Recife por negligência da patroa de sua mãe.
Considerada a embaixadora do Instituto Menino Miguel, da Universidade Federal Rural de Pernambuco, a artista esteve na reitoria da UFRPE, no dia 20 de julho, para se reunir com Mirtes Renata, mãe de Miguel. No encontro, a cantora gaúcha buscou ficar por dentro das ações do projeto e como ele tem ajudado na vida de outras pessoas. Os direitos autorais da música, inclusive, foram doados por Calcanhotto para a família de Miguel.
Mirtes e Adriana se conheceram no Rio de Janeiro, na casa da artista. O reencontro das duas sofreu um hiato por conta do isolamento compulsório causado pela pandemia e, a cantora não voltou ao Recife desde então. Outro reencontro – palavra tão ressaltada com entusiasmo ao longo dessa entrevista – ocorreu na última semana no Teatro RioMar Recife, com a mãe de Miguel sentada nas primeiras fileiras da sala, durante o Adriana Calcanhotto – Voz e Violão.
Num palco intimista, Calcanhotto fez uma apresentação acústica luxuosa e repertório que passeou por toda a sua carreira, levando a plateia a cantar do começo ao fim, com a presença de várias gerações. “As canções tocam em assuntos que servem para todo mundo, não importando a idade”, ressalta.
O show já foi apresentado em várias cidades brasileiras e, entre maio e junho, chegou a dez países da Europa. Desfilaram sucessos como “Devolva-me”, “Vambora” e “Esquadros”, além das recentes “Veneno Bom” e “A Flor Encarnada”, gravada por Maria Bethânia. No último final de semana, Calcanhotto levou o mesmo formato para o Festival de Inverno de Garanhuns, na região Agreste de Pernambuco, em duas sessões que faltaram ingressos para os fãs.
Nesta entrevista exclusiva à Revista O Grito!, Adriana Calcanhotto fala da vinda a Pernambuco, seu processo de composição, carreira, política e pandemia. Confira:
A sua performance durante a canção 2 de junho foi muito potente durante o show, arrancando aplausos da plateia, comovendo a todos. Como ocorreu o processo de produção da música?
Foi difícil no começo eu entender que só uma música era talvez o que iria resolver aquela sensação que eu tinha quando eu vi na televisão tudo o que aconteceu com o Miguel era uma sensação de não conseguir engolir aquilo, literalmente, sabe? Costumo dizer para as pessoas e, mesmo no show, quando vou fazê-la, é sentir que fiz a canção porque eu não consegui não fazê-la. É a primeira vez que fiz uma canção nessa urgência, nesse tipo de circunstância, com essas sensações. Nunca fui movida dessa maneira a fazer uma canção. Não procura ser bela, pois mexe exatamente com isso. E a minha ideia da construção da música era criar a partir dos fatos, descrever, colocar na situação da cidade, é quase uma peça jornalística. Só no final é que se afasta um pouco dessa linguagem.
Você contou durante a apresentação que está se recuperando da Covid-19. Como está sua saúde? Como foi sobreviver à pandemia?
Ninguém quer viver uma pandemia, mas durante o tempo de confinamento, encarei como uma oportunidade de isolamento mesmo, de pensar o mundo de ter uma pausa, um silêncio e do planeta respirar. Tudo olhando pelo lado bom disso e de um respiro para o globo e pra civilização. Mas produzi um álbum com canções que falavam sobre isso. Só tive o vírus agora na volta da turnê da Europa. Na verdade, fui contaminada lá e recuperei bem e ainda tenho um pouco de falta de fôlego, porém estou conseguindo fazer os shows que é o mais importante de tudo é a volta, realizar as apresentações. Elas, inclusive, estão diferentes, pois tanto artistas, quanto plateia parece estar revalorizando esses encontros. E isso tem a ver com a parada, então penso que a pandemia tenha valido para isso: o reencontro é muito mais potente nesse momento, justamente agora, isso é muito bom!
Em O que temos, você incluiu o som de um panelaço contra Jair Bolsonaro. O que pensa do governo brasileiro? Como avalia, por exemplo, a política cultural, eclipsada por trocas constantes de líderes à frente da pasta de Cultura em Brasília?
Avalio que o governo Jair Bolsonaro não tem uma política cultural.
Adriana, você tem fãs de diferentes gerações em várias partes do Brasil. No Teatro RioMar públicos de diferentes idades foram prestigiar você, inclusive tendo sido “tietada” por uma criança, que, inclusive, a abraçou no palco. Qual o segredo do seu público estar sempre de renovando ao longo se décadas?
O menino foi me abraçar no palco, foi muito bonitinho. Acho que tem a ver com o Adriana Partimpim [sexto álbum de estúdio e o primeiro infantil da artista]. Mas talvez os primeiros ouvintes desse disco sejam senhores [risadas]. Engraçado isso! Na verdade, não sei explicar e isso é bom porque as canções tocam em assuntos que servem para todo mundo não importando a idade.
Você compôs bastante. O que te inspirou a compor tanto durante a quarentena?
Duas coisas me motivaram durante a quarentena: uma é que eu estava indo para Coimbra, em Portugal, para dar aulas de composição. Então, estava cheia de proposições para os alunos, tinha estudado para isso, movida por um movimento de composição. E a própria quarentena, a história de não ter ido, me fez compor a canção “Corre o Munda”. Essa foi a última que fiz dessa “safra” e que acabou se tornando o álbum Só. Então foi isso: tanto a preparação, o movimento que estava de dar aula, de composição e a quarentena em si, o vírus, o fato de estar isolada e de receber o mundo só pela televisão e pela internet.
Ainda está compondo outras canções? Tem escrito também poesia ou outras coisas?
No momento não estou compondo, estou no mood estrada, fazendo shows e tem sido muito interessantes por esse assunto do reencontro, da volta. Estou olhando para isso com muito interesse, tô ligada nisso e não estou num momento de compor não.
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