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Livro foi escrito durante a pandemia. Foto: Gustavo Bettini/Divulgação.

Um papo com Filipe Falcão, autor de A Estrada Amarela: “Muitas vezes falta representatividade nos personagens de histórias de terror”

Sertão pernambucano é cenário de história de terror no novo livro do autor pernambucano

A Estrada Amarela é o livro de estreia do pernambucano Filipe Falcão. Jornalista e doutor em comunicação, Filipe adentra no mundo da literatura com onze contos, cujas tramas se passam no sertão. Um detalhe: todas as histórias envolvem personagens que vão se deparar não apenas com acontecimentos estranhos e fantásticos, mas, também, terão de enfrentar anseios pessoais, antigos traumas e a solidão.

O livro foi escrito no primeiro semestre de 2020 durante o período inicial de quarentena provocado pela COVID-19. Para suportar o isolamento, Falcão diz que buscou refúgio com livros, filmes e música e, por pior e mais triste que fosse a realidade, isso o ajudou a passar por momentos difíceis. Fã da literatura fantástica e do cinema de terror, para ele foi fácil mergulhar neste universo, revisitando obras e descobrindo novos títulos.

Falcão conta que a escolha do sertão de Pernambuco como cenário para os contos aconteceu de forma natural. “Todos os personagens deste livro moram ou estão em trânsito pelo sertão. Apesar de ser recifense, sempre tive um respeito e um carinho muito especial pelo sertão e seus moradores. Uma região castigada pela seca, é verdade, mas dona de um visual único e que preencheria facilmente as páginas de um livro de poesia. Lembrei das estradas do sertão pelas quais eu próprio já transitei como pontes para histórias aguardando personagens”, relembra.

Ao pensar nos contos, Falcão teve um cuidado especial com a representatividade dos seus personagens. “Muitas vezes falta representatividade nos personagens de histórias de terror, então decidi trazer histórias que explorassem pessoas de diferentes idades, raças e orientações sexuais”.

Os contos de A Estrada Amarela revelam um autor, embora dando seus primeiros passos, com um domínio seguro da narrativa. Suas histórias têm a fluência e o ritmo adequado para os universos por ele retratados. Percebe-se a influência de sua formação cinematográfica, cuja preferência recai nos filmes de terror e de suspense, pela maneira como as tramas se desenrolam, criando tensão e expectativa a cada parágrafo.

A Estrada Amarela foi ilustrada pela artista plástica pernambucana Vânia Notaro. Com quatro décadas de pinturas e ilustrações, Vânia é uma apaixonada pelo sertão e conseguiu traduzir em imagens os textos do livro. Publicado pela editora Estronho, o livro foi lançado no início de junho e está disponível para venda na Amazon, Skoob, na loja virtual da editora Estronho ou no perfil do Instagram do autor: @filifalcao

O Grito! conversou com Filipe Falcão sobre o seu livro e a quantas anda o gênero terror no Brasil. 

Desde quando você se interessa pelo gênero terror?

Desde sempre (risos). Eu me lembro que quando tinha oito ou nove anos acordei de madrugada e liguei a televisão. Estava passando Halloween 2 (filme de 1981). Eu obviamente não entendia e nem conhecia a história, mas gostei do que vi e assisti até o final. Sempre gostei de cinema, mas o terror tem um lugar especial no meu coração. 

Quais são as suas principais referencias literárias no gênero? Algum autor (autora) em especial influenciou você diretamente?

A minha paixão literária se chama Anne Rice (autora, entre outros, de Entrevista com o VampiroO Vampiro Lestat). Gosto muito de literatura gótica de maneira geral com destaque para nomes clássicos como Edgar Allan Poe (A Queda da Casa de Usher), Mary Shelley (Frankenstein), Bram Stoker (Drácula). De autores nacionais eu gosto muito dos livros de André Vianco (Os Sete), Marcos DeBrito (À Sombra da Lua), Walter Moreira Santos (O Ciclista), entre outros.  

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Personagens enfrentam monstros internos. (Gustavo Bettini/Divulgação).

Na sua opinião quais motivos pelo qual o gênero terror tem uma presença relativamente tímida na literatura brasileira?    
Não acho que seja tímida. O que acontece é que esta literatura ainda não é divulgada e consumida de maneira mainstream. Acredito inclusive que tivemos um crescimento de autores/as e títulos nos últimos dez anos. Existe um número crescente de autores/as que lançam seus trabalhos por meio de pequenas editoras ou que se financiam por campanhas na internet. Mas claro, em comparação com a literatura nacional dentro de um contexto histórico de maneira geral, então realmente trata-se de um número pequeno. Creio que a tendência é de crescimento. Hoje existe uma criação muito grande para diferentes “subgêneros” dentro de livros de horror.  

O que levou você a situar as histórias de A Estrada Amarela no sertão?

Eu sou um grande apaixonado pelo sertão. Sou recifense, mas sempre gostei do sertão. Acho uma região muito bonita. Claro que existem diversos sertões passando por cidades desenvolvidas até pequenos e pobres vilarejos e casas isoladas no meio do nada. Decidi me concentrar nesta ideia de um sertão isolado. Acho que uma das questões mais funcionais de histórias de terror é brincar com a ideia de isolamento geográfico. Sozinho, o personagem não tem como pedir ajuda. Ele pode gritar, mas ninguém vai escutar e isto é bastante assustador. Não por acaso os contos se concentram na sua maioria com pessoas sozinhas que moram ou estão em trânsito pelo sertão.  

Na construção dos contos, tudo foi obra da sua imaginação ou tiveram histórias que você ouviu de outras pessoas e as adaptou?

Tudo foi obra da minha imaginação, mas acho que sempre existem adaptações no processo criativo. Existe um conto no qual um personagem fica preso em uma área de lama. Essa imagem de uma pessoa atolada na lama é muito forte na minha memória graças a um filme que assisti quando era criança chamado A História Sem Fim. Não é um filme de terror, mas sempre me pareceu algo assustador de acontecer. É importante destacar que nenhuma das histórias aconteceu comigo e que nenhum personagem é uma representação minha, mas algumas histórias surgiram de observações. Existe um conto que acompanha uma mulher que gosta de alimentar cachorros abandonados que ficam na beira de estrada. Eu tenho uma prima que costuma fazer isso e a ideia para escrever surgiu depois de uma viagem que fiz ao lado dela na qual paramos inúmeras vezes na estrada para alimentar cães famintos.

Um traço comum nas histórias do livro é a presença de construções (casa, hotel, igreja) mal-assombradas. Isso teria relação com o isolamento provocado pela pandemia da covid quando fomos obrigados a permanecer em casa e passamos a observá-las de um modo diferente?

Não necessariamente são lugares assombrados no sentido literal da palavra, mas que despertam estranhamentos nos personagens. Essas construções são parte dos contos, algumas são personagens dentro das tramas. 

 O livro foi escrito no ano de 2020 então com certeza existe toda uma leitura que dialoga com o isolamento que passamos a viver provocado pela pandemia da covid. A Estrada Amarela apresenta personagens sozinhos e que estão enfrentando problemas pessoais e medos internos. O isolamento que vivemos com a pandemia com certeza nos fez olhar para nós mesmos e naturalmente não vimos apenas coisas boas.  

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 “A Estrada Amarela podem gerar reflexões sobre questões como violência contra a mulher, transfobia, papel do poder público.” Foto: Gustavo Bettini.

Você também é fã de filmes de terror. Os seus contos têm um ritmo e uma estrutura que lembra muito a narrativa cinematográfica, inclusive o primeiro conto, que dá título ao livro, é baseado num roteiro de curta-metragem que você escreveu com Gustavo Bettini e Miva Filho. Está nos seus planos realizar filmes do gênero?

Sim, com certeza. Eu gosto de pensar os meus contos como roteiros. Acho que alguns seriam facilmente adaptados como curtas. Quem sabe em breve… 

A ideia corrente de que obras de terror são feitas levando em conta a psique humana, aproveitando-se dos instintos humanos e estimulando a excitação diante do perigo, é compartilhada por você?

Apesar de ser apaixonado por literatura, a minha maior referência vem do cinema. E vejo no cinema de terror possibilidades de leituras que vão além do medo e do susto. Existem alguns pesquisadores de cinema que apontam que o gênero terror é capaz de provocar inúmeras leituras sobre questões culturais, sociais e políticas das sociedades nas quais os filmes foram produzidos. Eu concordo bastante com esta leitura e fiz questão de trazer contos que vão além de dialogar com elementos de mistérios e sobrenaturais. Gosto de pensar que os contos de A Estrada Amarela podem gerar reflexões sobre questões em constante debate na nossa sociedade como violência contra a mulher, transfobia, empoderamento, o papel do poder público e suas negligências com os mais pobres, entre outros temas. 

Geralmente quando acontecem coisas ruins, trágicas, ou consideradas monstruosas (assassinatos em série, estupros violentos, mortes violentas terríveis com muito sofrimento) as pessoas costumam associá-las a histórias de terror – “parecia um filme de terror”. Como adepto do gênero você concorda ou discorda com essas afirmações? 

Não gosto deste tipo de comparação, mas é muito comum escutar. O cinema de terror trabalha com o queNoel Carroll (um dos maiores pesquisadores do cinema de terror) chama de horror artístico, o que é totalmente diferente da representação de realidade. O fã do cinema de terror gosta deste tipo de representação, mas abomina casos reais. É importante dividir o horror artístico das tragédias da vida real. 

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Você acredita em fantasmas? 

Esta foi a pergunta mais difícil de responder até agora. Acho que sim, não sei. Nunca vi, mas isto não significa que não existam. Acho que não são como vimos na maioria dos filmes de terror. Acredito em energia, espiritualidade, ancestralidade. Eu nem sei se consigo definir o que é um fantasma. Uma memória pode ser um fantasma. 

Conta pra gente o que você sente quando escreve histórias de terror.

Sinto prazer em criar. Gosto muito do processo criativo, seja de escrever um livro acadêmico, um livro de contos, produzir um curta-metragem ou orientar trabalho de alunos. Acho muito gostoso o processo criativo independente do recorte. Vou ter prazer tanto em escrever um roteiro de terror como ajudar uma aluna a produzir um videoclipe gospel para a nota da disciplina. 

Você já se viu numa situação tão assustadora quanto as que você conta?

Não. Ainda não. Nem sei se eu quero (risos). Prefiro sentir medo com representações artísticas. Neste caso, com um bom filme ou bom livro.