“Dizem que o vento / Está sedento / Sem pestanejar / Mas o presente se encontra aqui / Mais uma vez está em suas mãos / Vá”. Esses são os versos de “No Ar”, canção do trio pernambucano Mulungu, que lança O Que Há Lá, seu álbum de estreia. Com extensas e notáveis referências que vão desde Linn da Quebrada, Gal Costa, até Gorillaz e The Arcs, o disco chega com a participação de diversos artistas como Una, Luna Vitrolira, Sofia Freire, Felipe Castro e Henrique Albino.
O trio Mulungu, formado por Jader, Guilherme Assis e Ian Medeiros, traz percussão, instrumentos eletrônicos, além da influência do pop e do rock, para falar sobre questões existencialistas e questionar quem somos, o que será do futuro e o que desejamos, há um “tempo certo”? O grupo já trilha um caminho de sensibilidade com singles como “No Ar” e “Deus Tempo”, este último que conta com um remix de Benke Ferraz, da banda Boogarins. “É sobre aceitação, aceitar a própria existência como um todo. Mas essa aceitação que a gente fala é interna, sobre os próprios sentimentos”, afirma Jader.
Quando o trio se reuniu num estúdio para compor o disco, eles nem imaginavam o que estava por vir. Ao mesmo tempo, não poderíamos ter em mãos um álbum tão coerente com a conjuntura que estamos vivendo desde o ano passado com a pandemia.
A Mulungu lamenta o momento de tristeza na pandemia vivido pelo Brasil e não mede as palavras para pedir a saída do presidente Bolsonaro. “Toda e qualquer nota ou acorde desse disco está gritando Fora Bolsonaro”, crava Jader.
De olho no acesso da obra para todo mundo, o disco O que há lá teve, desde os estágios iniciais, planejamento de comunicação voltado para as pessoas com deficiência. As obras audiovisuais foram pensadas lado a lado com o intérprete de Libras Liliana Tavares, produtora de acessibilidade da COM Acessibilidade Comunicacional, que conduziu o projeto.
Confira o bate-papo com Jader, Guilherme Assis e Ian Medeiros:
Por que o título “O Que Há Lá”?
Jader: O que há lá é o título de uma das faixas do disco e sinto que ela conseguiu amarrar direitinho o conceito que a gente tá trazendo no disco como um todo! Um disco que tem uma essência bem existencial, que traz um monte de perguntas, mas que na verdade traz no título uma afirmação: o que há lá. É sobre aceitação, aceitar a própria existência como um todo. Mas essa aceitação que a gente fala é interna, sobre os próprios sentimentos… não uma aceitação da realidade imposta por uma sociedade machista e LQBTQIA+fóbica – de vez em quando o que há lá também é revolta.
‘Quem somos’, ‘o que queremos’ e ‘qual o tempo das coisas’ são algumas reflexões feitas nas letras. Qual importância de abordar esses sentimentos?
Jader: Olha, acho que por muito tempo fomos ensinades a não tocar nos nossos sentimentos. Tem que ficar guardado sob sete chaves… e não é por aí. O processo da Mulungu sempre foi muito sobre troca! As temáticas trazidas são coisas que rodeavam nossos papos, nossos desabafos… e achamos importante trazer isso na música… Às vezes a música pode ser um portal muito lindo que nos faz acessas sentimentos e sensações guardadas pelo tempo! Então com esse disco a gente brinca um pouco de vasculhar isso tudo no fundo da cabeça hahahha
Como foi planejada a sonoridade do álbum?
Ian: Ela foi surgindo espontaneamente. De início fomos construindo o álbum de uma forma que também fizesse sentido ao vivo, já que somos um trio sem baixista e alguns elementos gravados seriam disparados no palco. Pra que não ficasse com aspecto de playback, acabamos decidindo usar baixos sintetizados, loops e samples. Além disso, acho que a sonoridade reflete a forma que gostamos de trabalhar nos nossos estúdios, o Zelo e o Cantilena.
O disco tem uma pegada setentista. O que mais chama a atenção dessa época e quiseram trazer para o álbum?
Ian: Além de utilizarmos alguns microfones comuns nessa época, que imprimem texturas interessantes nas fontes sonoras, nos inspiramos muito na forma de trabalhar, onde as limitações estimulam os processos criativos e os instrumentos são gravados já muito próximos do resultado final desejado.
Como se deu a origem da Mulungu? Quando perceberam que queriam formar uma banda para falar do mundo ao seu redor através da música?
Guilherme: Fazer música como expressão é algo que é comum pra todos integrantes da Mulungu e talvez seja o primeiro ponto em comum mesmo antes de pensar em ter banda.
E foi assim que surgiu a Mulungu, em uma ocasião em que Ian, que é de Natal, veio pra Recife e nós o convidamos pra fazer um som com a gente no Zelo Estúdio (estúdio que tenho com Jáder e Barro). E de primeira nós tivemos uma enorme sintonia e fluidez e foi a partir daí que ficamos empolgados pra fazer um disco a partir de toda essa experiência vivida dentro do estúdio.
Aí chegou a vez da gente, os recifenses, irem pra Natal tocar junto com Ian em sua terra natal e dar início ao processo de produção do disco O Que Há Lá. Antes mesmo de existir o nome Mulungu na banda.
Junto com o álbum, foi lançado também um registro em documentário da banda. De onde surgiu a ideia? Qual foco desse doc?
Ian: Nosso plano inicial era fazer um show de lançamento do álbum, porém, devido à pandemia, houve a necessidade de se adaptar ao momento e surgiu a ideia do doc. O vídeo foi gravado na Passa Disco, um lugar muito especial pra gente, e nele mostramos o que tem por trás de “O que há lá”, além de tocarmos algumas músicas, pra dividir um pouco do que é a Mulungu até podermos voltar a fazer shows por aí.
O doc foi gravado na Passa Disco. A banda em alguma relação afetiva com o espaço? Qual relação você tem (ou não) com o disco físico?
Jader: Ah, com certeza. A loja foi criada pelo meu pai e já virou casa de todo mundo da banda. A gente da banda é bem família unida hahahha então fez muito sentido gravar esse doc “em casa” – além da estética e representatividade da resistência da cultura pernambucana que a passa disco traz.
Acho o disco físico lindo, ainda mais quando tratado como obra de arte – o que é esse trabalho primoroso que Furmiga trouxe no projeto gráfico. O disco físico era uma vontade nossa desde que começamos a pensar nas músicas… e que venha o vinil!!
O disco conta com recursos de acessibilidade. Qual o desafio de produzir músicas que sejam acessíveis? Isso muda o modus operandis da banda?
Guilherme: Muda desde o começo, no próprio processo de composição. Isso foi algo em que eu e Jáder discutimos bastante.
Em alguns projetos anteriores a maneira de Jáder escrever era algumas vezes complexas e que a gente teve uns insights de que essas composições poderiam ter uma linguagem mais acessível, mais próximo da maneira que a gente fala.
Essa foi nosso primeiro desafio e um fator que demarcou por onde as composições iriam habitar. Desse jeito percorreu o disco todo até no momento em que pensamos que incluir algumas ações de acessibilidades para pessoas com algumas deficiências, como forma de nossa música chegar ao máximo de pessoas possível.
Qual impacto da pandemia e do isolamento social na arte de vocês?
Guilherme: Eu acredito muito na força do coletivo, principalmente na hora de fazer arte, música…
Mesmo eu sendo produtor musical e ter um estúdio, pois tenho uma autonomia muito grande pra se fazer música, o fato de eu não poder encontrar as pessoas impactou muito seja financeiramente ou emocionalmente. Pois é incomparável a fluidez e o prazer de se fazer música com outras pessoas ao invés de se fazer só.
Então teve vários momentos de dificuldade e tristeza por não estar podendo exercer aquilo que nós mais curtimos fazer…
A sorte foi que nós terminamos o disco antes de começar a pandemia e então conseguimos fazer todo o trabalho de lançamento e divulgação à distância e assim seguimos tentando. Mas o sonho é a gente poder rodar pelo Brasil fazendo o show e tocando as músicas da Mulungu.
Qual relevância de ter um corpo LGBTQIA+ no palco? De que forma isso atravessa sua vivência e produção artística?
Jader: O palco foi onde eu permiti me conhecer. Compor foi sem dúvida a maneira que achei que conversar com diversos sentimentos que pelos quais a homofobia me fez sofrer. E colocar essas composições sob a luz de um palco foi trazer a tona toda essa maré. Ser LGBTQIA+ e questionar essa binaridade de gênero imposta por nossa sociedade atravessa toda e qualquer coisa que eu possa fazer, e coma música não é diferente! Vamos usando a música como arma e como forma de descoberta.
Ser artista no Brasil governador por Jair Bolsonaro é…
Jader: Pra ele é ser criminoso. Pra gente é sinônimo de luta. Toda e qualquer nota ou acorde desse disco está gritando Fora Bolsonaro. Ele não nos representa e trazemos isso à tona sempre que possível.
Junto com a Mulungu, você lançou recentemente disco “O QUE HÁ LÁ e, logo em seguida, pariu seu novo single, “EU GOSTO. Você faz mais música que a sua capacidade de lançar discos? Comente sobre esse novo trabalho.
Jader: HAHAHA eu acho que não é muito sobre compor mais do que a capacidade de lançar discos! Acredito que vai mais por eu me entender em muitos espaços e precisar gritar várias coisas! Eu tava sentindo muita necessidade de fazer um trabalho mais pop, mais dançante… e abraçar o forró, uma coisa TÃO diferente de tudo que já fez na vida foi a maneira que encontrei! Nesse novo trabalho eu vou cantando mais com o corpo e dançando mais com a voz… quero fazer o povo dançar!
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