Letras do disco Zii e Zie – Caetano Veloso

Caetano Veloso e banda (Foto:Divulgação)

PERDEU
(Caetano Veloso)

Pariu, cuspiu, expeliu um deus, um bicho, um homem
Brotou alguém, algum, ninguém, o quê?, a quem?
Surgiu, vagiu, sumiu, escapuliu
No som, no sonho somem
São cem, são mil, são cem mil, milhão
Do mal, do bem, lá vem um

Olhos vazios de mata escura e mar azul
Ai, dói no peito aparição assim
Vai na alvorada-manhã
Sai do mamilo marrom o leite doce e sal
Tchau, mamãe
Valeu

Cresceu, vingou, permaneceu, aprendeu nas bordas da favela
Mandou, julgou, condenou, salvou, executou, soltou, prendeu
Colheu, esticou, encolheu, matou, furou, fodeu até ficar sem gosto
Ganhou, reganhou, bateu, levou, mamãe, perdeu, perdeu, perdeu…
Céu, mar e mata mortos da luz desse olhar
Antes assim do que viver pequeno e bom
Não, diz isso não, diz isso não
A conta é outra, tem que dar, tem que dar
Foi mal, papai
Anoiteceu

Brilhou, piscou, bruxuleou, ardeu, resplandeceu a nave da cidade
O sol se pôs depois nasceu e nada aconteceu

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SEM CAIS
(Pedro Sá / Caetano Veloso)

Catei colo e o mar parou
Fui deitando pra perguntar
Nome, bairro, amigo, amor
De onde vem o parar o mar?

Seu sorriso bateu aqui
Inda posso me apaixonar

Quero tanto, quero tanto, quero tanto você
Mar aberto, mar adentro, mar intenso, mar imenso sem cais
Tou com medo, tou com medo, tou com medo de ver
Que inda posso, que inda posso, que inda posso ir bem mais

Barra, Gávea e Arpoador
Deuses brancos de luz do mar
Deuses negros, um esplendor
Quem é essa e o que será?

Quem me dera eu poder me dar
Todo a essa que eu nunca vi

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POR QUEM?
(Caetano Veloso)

Blush em minha fronha, quem
Deixa esse cheiro bom assim?
Músculo que sonha, vem
Ai ai ai ai ai ai
Quem vai ai ai ai ai ai
Quem sai ai ai ai ai ai
De mim?

Foi a noite
Negros asfalto, pneu e mar
Ranhuras da montanha
Descem até o vale
Lágrimas vão de mim
Por quem?

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LOBÃO TEM RAZÃO
(Caetano Veloso)

Lobão tem razão
Irmão meu lobão
“Chega de verdade” é o que a mulher diz
Tou tão infeliz
Um crucificado deitado ao lado
Os nervos tremem no chão do quarto
Por onde o sêmen se espalhou

O mundo acabou
Mas elas virão
E nos salvarão a ambos nós dois
O medo já foi
O homem é o próprio lobão do homem
Ela só vem quando os mortos somem
Ela que quase nos matou

Chove devagar
Sobre o Redentor
Se ela me chamar
Agora
Eu vou

Mais vale um lobão
Do que um leão
Meto um sincerão e nada se dá
O rock acertou
Quando você tocou com sua
banda
E tamborim na escola de samba
E falou mal do seu amor

Chove devagar
Sobre o redentor
Se ela me chamar
Agora
Eu vou
Lobão tem razão

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A COR AMARELA
(Caetano Veloso)

Uma menina preta de biquíni amarelo
Na frente da onda
Que onda, que onda, que onda que dá
Que bunda, que bunda!
Que onda, que onda, que onda que dá
Que bunda, que bunda!

É o melhor que podia acontecer
À cor amarela
Destacar-se entre o mar e o marrom
Da pele tesa dela
O sol já tem muito o que fazer
Na minha vida
Querida
Quem é você?

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A BASE DE GUANTÁNAMO
(Caetano Veloso)

O fato de os americanos
desrespeitarem os direitos humanos
em solo cubano é por demais forte
simbolicamente para eu não me
abalar

A Base de Guantánamo
A base da baía de Guantánamo
Guantánamo

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FALSO LEBLON
(Caetano Veloso)

Ecstasy (bala), balada
E me chama depois
Pra dar uma e dar dois
Ela é que causa, é que explana
E acende os faróis

Mas o meu samba transcende
E apaga as pegadas
Que ela quer deixar
Falso Leblon Big Brother
Tou fora do ar

Ai amor
Chuva num canto de praia no fim
Da manhã
E depois de amanhã?

O que faremos do Rio
Quando, enriquecendo,
passarmos a dar
As cartas, as coordenadas
de um mundo melhor?

Quanta tristeza guardada
Na cara da moça
Bonita que dói
Francisco Alves, Seu Jorge,
os Hermanos – já foi

Ai amor
Chuva num canto de praia no fim
Da manhã
E depois de amanhã?

Drogas, tou fora, tá foda
E agora vombora
Nem vinho tomei
Me sinto muito sozinho
E ela é a lei

Odeio a vã cocaína
Mas amo a menina
E olho pro céu
Ela se esgancha por cima
De mim: quem sou eu?

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INCOPATIBILIDADE DE GÊNIOS
(João Bosco / Aldir Blanc)

Dotô
Jogava o Flamengo, eu queria escutar
Chegou
Mudou de estação, começou a cantar
Tem mais
Um cisco no olho, ela em vez de assoprar
Sem dó
Falou que por ela eu podia cegar

Se eu dou (ai, se eu dou)
Um pulo, um pulinho, um instantinho no bar
Bastou
Durante dez noites me faz jejuar
Levou
As minhas cuecas prum bruxo rezar
Coou
Meu café na calçola pra me segurar

Se eu tô
Devendo um dinheiro e vem um me cobrar
Dotô
A peste abre a porta e ainda manda sentar
Depois
Se eu mudo de emprego que é pra melhorar
Vê só
Convida a mãe dela pra ir morar lá

Dotô
Se eu peço feijão ela deixa salgar
Calor
Mas veste casaco pra me atazanar
E ontem
Sonhando comigo mandou eu jogar
No burro
E deu na cabeça a centena e o milhar:
Quero me separar.

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TARADO NI VOCÊ
(Caetano Veloso)

Tarado, tarado, tarado, tarado
Tarado, tarado, tarado
Tarado ni você
Tarado ni você

Ni mim
No carnaval
Ni tudo
Ni todo mundo nu

(Deixa eu gostar de)

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MENINA DA RIA
(Caetano Veloso)

Uma moça de lá do outro lado da poça
Numa aparição transatlântica
Me encheu de elegante alegria
(Ai Portugal, ovos moles, Aveiro)
Menina da Ria
Menina da Ria
Menina da Ria

E uma preta (parece que eu estou na Bahia)
Tão linda quanto ela e dizia
No seu português lusitano:
“Pode o Caetano tirar uma foto?”
Menina da Ria
Menina da Ria
Menina da Ria

Arte Nova, um prédio art-nouveau numa margem
Em frente à marina-miragem
Os barcos na Ria, e depois
Uma taça
Sobre o púbis glabro, um estudo
Nenhum descalabro se tudo
É sexo sem sexo em nós dois
Menina da Ria
Menina da Ria
Menina da Ria

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INGENUIDADE
(Serafim Adriano)

Não
Eu não podia me enganar assim
Com uma criança qualquer
Que veio ao mundo bem depois de mim
Eu
Não reclamo o que ela fez
Só condeno a mim mesmo
Por ter me enganado outra vez

Eu fiz o papel de um garotinho
Quando arranja a primeira namorada
Na ingenuidade acredita em tudo
Porque do amor não entende nada
Eu que tantas vezes machuquei meu coração
E levei tantos anos pra curar
Fui tornar molhar meus olhos
Coisa que eu luto há tanto tempo pra enxugar

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LAPA
(Caetano Veloso)

Samba Canal 100 no meio dos 60
E nos 70 era o Largo da Ordem
Tudo vinha desaguar na Lapa
Lapa
Minha inspiração
Guinga e Pedro Sá
Lição

Quem projetaria essa elegância solta
Essa alegria, essa moça vanguarda
Esse rapaz gostoso que é a Lapa?
Lapa
Circo Voador
Lapa
Choro e rock’n’roll
Perdão

Cool e popular, cool e popular,
cool e popular
A Lapa
Quem ia imaginar, quem ia imaginar
quem ia imaginar
Só eu
Eu sozinho, só e solitário
Sob a chuva da Bahia

Pobre e requintado e rico e requintado
E refinado e ainda há conflito
Pelourinho vezes Rio é Lapa
Lapa
Veio a salvação
Lapa
Falta o mundo ver
Assim

“Água” de Kassin lava a Nova Capela
Eu amo a PUC e a gíria dos bandidos
Fundição Progresso: eis a Lapa
Lapa
Lula e FH
Lapa
Amo nosso tempo
Em ti

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DIFERENTEMENTE
(Caetano Veloso)

Acho que ouvi numa canção de Madonna
“When you look at me I don’t know who I am”
E desentendi
Pois comigo é você quem, me olhando, detona
A explosão de eu saber quem eu sou

Eu nunca imaginei que nesse mundo
Alguma vez alguém soubesse quem é
Mas se você me vê seus olhos são mais do que meus
Pois amo
E você ama
E aí o indizível se divisa
E a luz de tantos céus inunda a mente
E no entanto
Diferentemente de Osama e Condoleezza
Eu não acredito em deus