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MÍDIA, LUTA DE CLASSES E SNARK
Entre o pleno sucesso e as oscilações do mercado o Gawker Media, um dos impérios mais bem sucedidos da internet, toma rumos incertos até para os fãs mais antigos
Por Pedro Neves

Pense em seu blog preferido. Ele faz fofoca sobre pessoas que você nem conhece? Toma qualquer assunto, por mais sério ou sagrado que seja, como motivo para piada? Tem um senso de humor sarcástico, irônico, ácido, até mesmo cruel? Ele fala, enfim, na língua do snark? Se a resposta for sim, então é bem provável que ele seja influenciado, direta ou indiretamente, pelo Gawker. O blog americano não é exatamente o inventor do snark – a arte do comentário cínico e venenoso – mas foi um dos principais responsáveis por torná-lo a língua franca da internet. O Gawker é o modelo que inspira nove entre dez blogs.

O Gawker é apenas o principal blog de uma rede que já contou com dezesseis títulos. Atualmente, o Gawker Media é composto por dez sites que versam, sempre muito sarcasticamente, sobre games (Kotaku), celebridades (Defamer), gadgets (Gizmodo), esportes (Deadspin), o universo feminino (Jezebel), ficção científica (io9), carros (Jalopnik), dicas para facilitar a vida (Lifehacker) e pornografia (Fleshbot). Em princípio, o site-mãe teria como foco a mídia nova-iorquina, mas na verdade o Gawker tece comentários sobre basicamente qualquer coisa, de política internacional a reality shows, da crise mundial a qualquer notícia envolvendo macacos.

Criado em 2002 por Nick Denton, ex-jornalista econômico e empreendedor incipiente, e mantido por Elizabeth Spiers, aspirante a escritora recém-chegada em Nova York, o Gawker rapidamente chamou a atenção dos profissionais da mídia de Nova York pelas fofocas sobre a vida dos czares da imprensa como Tina Brown, ex-editora da revista New Yorker e colunista do Washington Post, e Anna Wintour, a todo-poderosa editora da Vogue. Em pouco tempo, e com novos editores, o blog expandiu sua audiência e conquistou um fiel grupo de seguidores e comentaristas. Os comentaristas, aliás, são um dos segredos do sucesso do Gawker. Para ter seus comentários publicados, era preciso antes passar por uma seleção que analisava a relevância, a pertinência e principalmente o senso de humor do que era dito, garantindo a qualidade do conteúdo. Ser comentarista era participar de um grupo seleto; ser comentarista com uma estrela dourada ao lado do nome era ser ainda mais VIP.

O Gawker está intimamente ligado com a sua época e lugar. Os anos 2000 trouxeram muitas mudanças à cidade de Nova York: um crescimento econômico sem precedentes elevou o custo de vida a um patamar impossível para os profissionais da classe criativa. Viver em Manhattan virou privilégio de milionários. Os novos-ricos de Wall Street criaram uma nova cultura de materialismo e ostentação que muitos enxergaram como a morte da cena artística vibrante e autêntica que sempre se associou a Nova York. Carrie Bradshaw (ou, como prefere o Gawker, Scary Sadshaw) e Mr. Big viraram a regra, não a exceção. Os “douchebags”, ricos de ego inflado e pouca inteligência ou bom gosto, sempre foram o alvo principal do Gawker. Mas a bile não está reservada a apenas esse grupo social. O Gawker tampouco suporta os “hipsters”, alternativos de butique que escutam música indie, usam roupinhas retro/bizarras e são sustentados pelos pais. O Brooklyn, e mais especificamente o bairro de Williamsburg, tornou-se o reduto dessa tribo, acelerando o processo de gentrificação (enobrecimento urbano que acarreta valorização imobiliária e a expulsão dos moradores originais) de um borough historicamente associado às classes menos favorecidas. O Gawker funciona como uma espécie de tribuna dos ressentidos. O blog é marcado por uma inclinação liberal/esquerdista, e conta com um amplo público gay. Sua missão, de certa forma, seria desmascarar a hipocrisia social onde ela existisse, com muito snark. Definitivamente, não era um blog para o grande público.

Parte do charme do Gawker era justamente seu caráter de panelinha. Mas a exclusividade não estava nos planos de Denton. Em torno de 2004 o Gawker Media já era um pequeno império, e o empresário queria mais leitores para o site-mãe. A essa altura, com a contratação da editora Jessica Coen, o Gawker começou a mudar seu enfoque. Ao lado de Anna Wintour começou a aparecer Britney, Lindsay, Marc Jacobs. Ser venenoso com os ricos e poderosos não parecia nada demais – afinal, qualquer uma dessas celebridades tinha mais poder que um blog em ascensão, mas com público ainda restrito. O Gawker, porém, não deixou de aplicar seu tratamento ultra-sarcástico em jornalistas e editores muitas vezes completamente desconhecidos fora do universo midiático de Nova York. Comentaristas de todo o mundo se juntavam para criticar com crueldade pessoas com pouca influência ou status. O Gawker, talvez inadvertidamente, já tinha poder suficiente para criar celebridades, para o bem ou para o mal (geralmente para o mal).

Foi por essa época que surgiu Julia Allison. Jovem colunista de sexo com ambições de fama e fortuna, Allison era completamente despudorada quando o assunto era autopromoção. Ela começou a aparecer em todas as festas da imprensa, fazendo a íntima com jornalistas de médio porte e posando para fotos mesmo longe das câmeras. O Gawker rapidamente a classificou de “fameball”, pessoa que força a celebridade de evento em evento. Apesar dos seus esforços, Julia não havia conseguido a publicidade necessária até a ajuda do blog. O Gawker foi especialmente cruel com a jornalista, mas foi através da sua influência que Allison passou a ser realmente conhecida. Ela tomou as pancadas como uma campeã – como se tivesse forjado um pacto com demônio, trocando a dignidade pela fama. Mas nesse pacto quem perdeu a alma (ou pelo menos parte dela) foi o Gawker.

Julia Allison foi um dos sinais de que o site estava mudando. Até aí as mudanças não haviam incomodado tanto os fãs. As fofocas podiam ser baratas, mas o Gawker era bem escrito, e sua crueldade se confundia com postura crítica. Estava incomparavelmente acima, por exemplo, de um TMZ ou um Perez Hilton – blogs, aliás, que o Gawker sempre criticou ferozmente. À medida que o site cresceu e novos escritores foram contratados, a pressão para uma maior produção aumentou. De um blog com uma escritora e doze posts diários, o Gawker passou a ter uma equipe de cinco escritores publicando uma média de sessenta posts por dia. Em 2007, Denton instituiu uma nova forma de pagamento aos funcionários: além de um salário base, haveria um bônus por número de acessos a um post.

Consequentemente, as manchetes tornaram-se apelativas; o lead frequentemente pouco tinha a ver com o conteúdo real da matéria. Um grande pulo para um público mais amplo foi um vídeo de Tom Cruise fazendo propaganda para a Igreja da Cientologia. Por pedido da instituição, o clipe foi retirado do YouTube e de vários sites de fofoca, mas o Gawker manteve-se firme, apesar das ameaças de retaliação legal. A gota d’água para muitos leitores veteranos veio com a cobertura da morte de Jett, o filho de dezesseis anos de John Travolta. O blog especulou que a morte havia sido causada por negligência, que o especialista contratado para tomar conta do menino era o amante de Travolta, e que o Jett teria autismo nunca tratado por conta das crenças religiosas dos pais (também membros da Cientologia). O Gawker se aproximava cada vez mais de um tablóide comum, e comentaristas de longa data abandonaram o site indignados. Tudo indicava que o antigo Gawker havia chegado a um fim definitivo. Um blog novo parecia surgir, bem mais popular, mas sem o prestígio que já havia tido.

Desde então o Gawker tem se esforçado por buscar um novo ponto de equilíbrio. No ano passado a crise econômica trouxe mudanças significativas para Nova York: a bolha estourou, e os jovens milionários de Wall Street perderam seus empregos da noite para o dia. Ostentação passou a ser sinal de mau gosto. Amy Winehouse e Lindsay Lohan, o comportamento desenfreado, tudo parece coisa do passado. Foi o fim de uma era. De quem o Gawker pode rir então? Chegaram as novas diretrizes: menos Britney, mais Obama. Mas, mesmo com a crise, ainda há ricos para criticar. Periódicos da cidade, em especial o New York Times, tentam lançar uma moda “recession chic” e se debruçam sobre os cortes no guarda-roupa dos superricos, deixando de lado os que realmente estão sofrendo com a recessão, a massa sem glamour. E claro que o Gawker usa todo seu snark (que permanece intacto) para ridicularizar o elitismo. A cultura pop e as fofocas continuam lá, é lógico, mas com o enfoque menos apelativo e mais crítico do extravagantemente talentoso Richard Lawson. O antigo estudante de teatro é responsável, aliás, pelas seções mais divertidas do Gawker, as “recaps”, recapitulações de programas de TV lowbrow como Gossip Girl, The Hills e American Idol que basicamente reinventam os episódios com um humor sarcástico e surreal.

A recessão também vem afetando a imprensa e tornando realidade o apocalipse midiático que o Gawker sempre previu. Nick Denton deve estar feliz, mas os bloggers, em sua maioria, são jornalistas, e não é fácil ver os colegas de profissão serem demitidos e os seus possíveis (e muitas vezes almejados) futuros locais de trabalho fecharem as portas: a queda do jornalismo impresso tem sido observada com solidariedade e schadenfreude, a alegria perversa. E, claro, muito snark. Nada garante, entretanto, que as empresas da internet sobreviverão intactas à crise. Os blogs do Gawker Media, e o site-cabeça em particular, estão em dúvida sobre que caminho seguir para conciliar os interesses econômicos e o padrão de qualidade que é seu atrativo. Atravessam uma fase delicada. Resta ver o que o futuro reserva para um dos blogs mais influentes da curta história da internet.

SAIBA MAIS

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