Entrevista – Márcia Castro: “Vivo entre a excitação das novidades e o conforto do que conheço”

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Foto: Divulgação.
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“Vivo entre a excitação das novidades e o conforto do que já conheço”
Cantora inova em sua sonoridade com o terceiro disco, Das Coisas Que Surgem, produzido por Gui Amabis

A cantora baiana Márcia Castro chega em seu terceiro disco com a sempre difícil tarefa de amadurecer. Para este Das Coisas Que Surgem ela contou com o produtor Gui Amabis para unir as inovações do pop contemporâneo com seu estilo próprio, marcado por uma interpretação irônica e expressiva das músicas.

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Foi também neste disco que Márcia se sentiu segura para arriscar como compositora. Cerca de metade do disco é de sua autoria. Mas ela também garimpou boas faixas com nomes de diversas cenas e fases da música brasileira. É o caso do ex-Titã Arnaldo Antunes com Alice Ruiz e o seu conterrâneo Lucas Santtana.

“O álbum tem uma natureza urbana, experimental em termos de sonoridade. Acho que esse conceito de sonoridade é o que melhor define o disco”, diz Márcia, que decidiu inovar tanto em sua forma de cantar quanto ao direcionamento conceitual. “Amadureci meu canto, minha percepção musical, meus conceitos de som, meu repertório musical. Isso me dá muito mais liberdade de escolha, mais possibilidades de realizações”.

Márcia conversou com a Revista O Grito! sobre esta sua nova fase e também dos desafios de experimentar. Baiana residente em São Paulo, a cantora ainda falou da nova cena musical brasileira e do que espera para o futuro pós-Eleições do ano que vem. “Sigo mais apreensiva do que otimista, embora nunca deixe de acreditar”.

Este é seu primeiro trabalho em que você aparece como compositora. Como foi o processo de composição do álbum?
Não planejava gravar minhas músicas. Só tinha a certeza que seria um disco de inéditas. Comecei a pedir músicas a novos compositores, mas da breve mostra que recebi, nada me instigava muito para cantar. Em paralelo, recebia poemas do Arruda, meu parceiro nas canções. Os versos dele tinham (tem) uma personalidade musical impressionante. Eu queria cantar aquelas letras. Daí, comecei de modo despretensioso a desenhar melodias, a compor versos em cima dos versos dele, a pedir outros versos para completar letras minhas. E assim foi que aconteceu esse processo de composição. Foi algo que se deu no mesmo tempo que o álbum vinha sendo concebido. Tudo bem devagar, bem degustado. Passo a passo.

O novo disco também tem músicas de Lucas Santtana, como “Partículas de Amor”, além de Arnaldo Antunes, Gui Amabis. Como foi pensado o repertório, tem algum conceito no álbum?
O álbum tem uma natureza urbana, experimental em termos de sonoridade. Acho que esse conceito de sonoridade é o que melhor define o disco. Daí fui pesquisar compositores que tem também essa personalidade em seus trabalhos. Gente que eu admiro, que já queria gravar há um tempo, como o conterrâneo Lucas Santtana e a dupla genial Arnaldo Antunes/Alice Ruiz. “Partículas de Amor” foi composta especialmente pro trabalho. Fiquei encantada quando Gui Amabis, que também é o produtor do álbum, me mostrou a música, que chegou antes da letra. E “Mau Caminho” ficou de fora de um dos discos do Arnaldo. Ele me mandou o mp3 e eu fisguei na hora. Tem algo nela de ironia, de brincadeira que eu curto muito.

Você é baiana mas ficou mais conhecida em São Paulo dentro de uma cena cheia de nomes bons como Tiê, Tulipa Ruiz, Rômulo Fróes. Como é morar em SP e fazer parte dessa geração?
Morar em São Paulo tem muitas delícias. A maior dela é cruzar e fazer som com esse monte de gente que tem realizado trabalhos incríveis dentro da música brasileira. Você acaba desenvolvendo outros campos de linguagem também, vai aguçando a criatividade, vai se impondo desafios, é tudo muito instigante. Ao mesmo tempo, sinto muita saudade do mar, da calma da Bahia, de uma afetividade especial e comum dos baianos, pois essas coisas todas são também extremamente importantes no meu processo criativo. Vivo no contraponto entre a excitação das novidades que me são oferecidas em Sampa e do que já conheço e é muito confortável na minha terra natal. Acho que me movimento muito ainda nessa tensão entre os dois lugares.

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Você ainda acompanha o que acontece na Bahia, tem contatos com a cena de lá?
Muito. Pelo menos a cada dois meses estou na Bahia. Minha família é de lá, gosto de estar perto deles, dos meus amigos e de nunca perder a conexão com a força musical do lugar, que é absurda. Tem pessoas hoje que são fundamentais no meu trabalho, como o Luciano Salvador Bahia, produtor do meu primeiro disco, Pecadinho. A turma do Baiana System são parceiros de longas datas. O Russo Passapusso lançou um disco sensacional no mês passado. Tem o maestro Letieres Leite e sua Orkestra Rumpilezz, que são profunda inspirações. Recentemente, conheci um produtor que tem desenvolvido uma linguagem absurda misturando ritmos como pagode baiano com música eletrônica, o Rafa Dias. A Bahia é muito antropofágica. Isso me instiga.

Muita coisa mudou em dez anos de carreira. Você consegue ver diferenças grandes daquela Márcia que começou lá atrás?
Muitas. Amadureci meu canto, minha percepção musical, meus conceitos de som, meu repertório musical. Isso me dá muito mais liberdade de escolha, mais possibilidades de realizações. Além de tudo, ter saído da Bahia e ido para SP, lugar onde não conhecia ninguém, me colocou diante de um desafio humano muito grande. Tive que me reinventar. E são essas condições mais frágeis que também nos obrigam a um fortalecimento humano. Isso tudo é o que a gente produz, o que a gente canta.

Qual a lembrança mais remota de você querer trabalhar com música?
Desde pequena eu me via como cantora, sei lá, acho que com 6 anos, mas eu era muito tímida para revelar isso para o mundo. Para você ter ideia, comecei a estudar violão aos 11 anos, mas nessa altura tinha vergonha de cantar na frente do professor. Só aos 13 anos que venci a timidez e comecei a tocar nas rodas dos amigos. A partir daí, as coisas foram tomando uma dimensão mais séria. Com 16 anos, já tocando em bares e espaços culturais de Salvador, não tinha dúvidas que era daquilo que eu queria viver, embora tivesse um receio quanto ao caminho árduo que a música representava.

Como foi sua educação musical, que artistas você identifica dentro do seu DNA como artista?
Os Tropicalistas e os grandes nomes do Jazz americano. Caetano, Gil, Tom Zé, Bethânia, Gal, Billie Holiday, Sarah Vaughan, Ella Fitzgerald, Nina Simone, Chet Baker, etc. Meu pai me aplicou todos eles. E também Elis Regina. Ouvi tudo dela, desde muito cedo. Meu pai era fã incondicional de Elis. Meu nome seria Elis, mas minha mãe intercedeu.

Muita gente passou a ouvir seu disco quando o viu no Deezer, Spotify, iTunes e outras plataformas de streaming. Do ponto de vista do artista, este novo momento da indústria fonográfica do Brasil está sendo interessante?
A gente tem muito mais modos de existência fora dos grandes centros de mídia e de distribuição. Todas essas plataformas que você citou são acessíveis a muita gente e tem mudado o comportamento do público, que de passivo a programação das rádios, vai em busca de sons que lhe representam de algum modo. Nossa música pode chegar facilmente em lugares distantes. E daí, você consegue fazer show no lugar e surpreendente as pessoas já cantam as músicas. Se pensarmos que isso seria impossível há 10 anos sem o suporte de uma gravadora, estamos num momento muito otimista e interessante sim. Obviamente, muita coisa boba acaba entrando no vácuo desse movimento, mas o público e o tempo vão fazendo a triagem. É uma questão de saber respeitar o momento das coisas.

O Brasil inicia um novo momento após estas eleições. Você está otimista em relação ao futuro, sobretudo no que diz respeito à cultura?
Essa é uma pergunta muito difícil. Sabemos que ano que vem será um ano de recessão econômica, independente de quem ganhe as eleições. E sabemos também que em ano de recessão econômica, a cultura é uma das primeiras pastas a sofrer cortes. Existe um segmento muito grande de artistas, como os independentes, que precisam das políticas culturais que foram implantadas no país ao longo desses 12 anos. Não sabemos se essas políticas sofrerão subtrações por conta da recessão que está por vir. Sigo mais apreensiva do que otimista, embora nunca deixe de acreditar.

Por fim, qual a sua relação com Recife e os artistas locais? Adoraríamos te ver em um dos festivais daqui. :)
Tenho uma admiração profunda pelos pernambucanos e pelos artistas daí. Sou apaixonada por Otto, um amigo querido, uma referência. Karina Buhr, outra amiga querida e uma pessoa pela qual tenho muito encantamento. Maior respeito por toda a turma da Nação Zumbi. Adoro o trabalho da Academia da Berlinda, de Catarina Dee Jah, Tibério Azul, Lirinha, Siba, enfim…. São muitos nomes. Vejo que Pernambuco foi fundamental para todo boom estético pelo qual a música brasileira vem passando. Só agradeço. Tenho muita vontade de tocar em Recife. Tomara que seja logo logo!