Entrevista Marcelo Gomes

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EXERCITAR O OLHAR

Por Alexandre Figueirôa
Da Revista O Grito!, no Recife

Viajo porque Preciso Volto porque te Amo, de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz vem recebendo uma excelente acolhida da crítica e também do público e está em cartaz em São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e já foi mostrado no Festival de Veneza, Itália, e em outras capitais brasileiras, a exemplo de Salvador e João Pessoa. Os 20 mil espectadores computados até o momento pode ser considerado um número excepcional para uma obra que flerta abertamente com o experimentalismo. Contudo, diferentemente de outros trabalhos conceituais, ele traz o espectador para dentro da experimentação e mescla com habilidade as fronteiras entre o documentário e a ficção. Nesta conversa com a Revista O Grito!, o pernambucano Ma rcelo Gomes conta um pouco do processo de criação do filme, como foi a parceria com Karim e fala também da recepção do que ele chama brincando de blockbuster do cinema experimental brasileiro.

» Leia crítica de Viajo porque Preciso Volto porque te Amo

O Grito! – Marcelo, como surgiu a idéia de realizar este filme?
Marcelo Gomes – Em 2000, eu e o Karim estávamos tentando captar recursos para os nossos primeiros longas Cinema, Aspirinas e Urubus e Madame Satã. E com a intenção de superar o desgaste emocional de ficar correndo atrás de recursos para filmar resolvemos filmar algo para exercitar o olhar. Decidimos então que seria algo que tivesse relação com o sertão nordestino, uma região que, na época, ainda era pouco conhecida para nós, mas pela qual sentíamos um grande interesse por ser uma região mítica para o imaginário brasileiro e por fazer parte da memória afetiva de nossos pais e avós. Então conseguimos um prêmio do Itaú Cultural e com duas câmeras mini-DV, duas Bolex de corda, uma câmera de super 8 e câmeras fotográficas começamos a viajar pelo interior do Nordeste.

O resultado desta viagem foi o curta metragem Sertão Acrílico de Azul Piscina?
Isto. Mas num primeiro momento não sabíamos muito bem o que resultaria daquela pesquisa. Apenas estávamos motivados por um desejo de registrar tudo que nos emocionasse e ao mesmo tempo quebrasse os estereótipos sobre o sertão nordestino. Foi uma viagem à flor da pele. Observamos o sertão, mas um sertão em mudança, que passa por um processo esdrúxulo em que o contemporâneo e o arcaico convivem lado a lado. Depois deixamos essas imagens de lado e partimos para a realização de nossos longas. Tínhamos, porém, cerca de 40 horas de material registrado e toda vez que víamos as imagens a emoção vivida anteriormente ressurgia e o resultado dessas impressões tão fortes foram mostradas no curta.

“Observamos o sertão, mas um sertão em mudança, que passa por um processo esdrúxulo em que o contemporâneo e o arcaico convivem lado a lado”

E quando Viajo porque Preciso Volto porque te Amo começou a ganhar forma?
Marcelo – Depois de Sertão Acrílico começamos a imaginar o que seria um longa-metragem com aquele mesmo material. Há dois anos surgiu então a idéia de criarmos um personagem que tivesse o mesmo espírito de nossa empreitada, ou seja, alguém com sensações à flor da pele e que de alguma forma trabalhasse em alguma atividade que iria transformar o sertão, um personagem ligado a terra por uma necessidade profissional e ao mesmo tempo se confrontando com seus conflitos pessoais. Foi então que optamos por um geólogo que estaria visitando a região para interferir nela, uma pessoa que fosse ela própria uma espécie de espelho do sertão e que de mero observador pouco a pouco i mpregnasse sua própria existência com a experiência que vivia.

Como foi a construção do roteiro?
Este foi o roteiro mais difícil que já enfrentei. Levamos cerca de um ano para construir o personagem do José Renato (interpretado por Irandir Santos, mas cuja figura não aparece e de quem só ouvimos a voz) e imaginar ele se confrontando com o sertão. Inicialmente ele vê a região de uma forma racional e, aos poucos, vai se identificando com o que vê e isto acaba rebatendo em seu interior. Nós queríamos que o filme não perdesse a idéia de alguém remexendo num baú de memórias e se emocionando com fotos, filmes, e ao mesmo tempo experimentando uma espécie de coleção de impressões guardadas no seu íntimo. Teria que ser um personagem que se comovesse também com a textura e as cores das imagens. Viajo… é um f ilme extremamente sensorial. E quando o roteiro estava pronto surgiu ainda a necessidade de novas imagens e tivemos que voltarão sertão para outros registros.

O filme tem uma forma narrativa simples e ao mesmo tempo sofisticada na maneira de articular o texto narrado pelo protagonista e as imagens.
A montagem segue o mesmo princípio de construção do personagem na literatura. O espectador tem que imaginar quem é o personagem. Na elaboração do roteiro tivemos o apoio de um geólogo e pesquisamos autores como Graciliano Ramos e Euclides da Cunha. Graciliano foi prefeito de Palmeira dos Índios, no sertão de Alagoas, e ele escreveu relatórios sobre a região. Lemos estes relatórios e ficamos impressionados com a descrição que ele fez. Assim como a descrição feita por Euclides da Cunha do sertão de Canudos na sua obra Os Sertões. O nosso personagem vai sedimentando a narrativa aos poucos e as imagens que a principio estão sendo apresentadas e parecem desconexas começam a ganhar sentido, pois é o personagem quem d iz o que vai fazer com elas.

Não foi difícil trabalhar a quatro mãos?
Tanto nos meus filmes como nos de Karim os personagens estão sempre em primeiro plano. Também nós fizemos filmes que se passam no sertão e compartilhamos a mesma relação com a região. Ela não é romantizada. É um olhar duro, crítico. O sertão parece simples, mas é muito complexo. As condições de vida das pessoas são muito duras, mas buscamos estabelecer com tudo isto uma relação abrangente e, sobretudo, sensorial.

Como tem sido a recepção do filme?
A emoção de quem o assiste é muito grande, embora seja um filme difícil. Logo quando ele começa, sempre saem da sala umas quatro ou cinco pessoas que não estão preparadas para viver tal experimentação. Mas os que permanecem não demoram a estabelecer uma relação afetiva muito forte. Em Salvador, um homem que trabalhou como caminhoneiro por 30 anos veio até nós e disse que conhecia todas as estradas e lugares mostrados no filme e ele afirmou textualmente “vocês fizeram o filme da minha vida”. Em Veneza uma mulher contou que se separou do marido e para esquecer o fim do casamento viajou para o Nepal, ou seja, muita gente algum dia fez uma viagem querendo esquecer algo e isto é universal. Acredito que nós conseguimos com Viajo… trazer o espectador para dentro da experiência sensorial que estamos propondo. Acredito também que este é o tipo de filme para ser exibido em galerias, museus, enfim, buscar outros espaços. Os pesquisadores de audiovisual das universidades também estão demonstrando muito interesse por ele, por ser um documentário que se transforma em ficção e por isso estimula uma reflexão sobre os novos caminhos do cinema.

Existe algum novo projeto em vista juntamente com Karim nesta mesma linha?
Eu estou concluindo a produção de um projeto intitulado Verônica, sobre jovens da classe média pernambucana, que deverá ser rodado a partir de outubro. Junto com o Karim, estamos revendo um material que foi utilizado na Bienal de São Paulo, em 2004, quando fizemos uma instalação sobre o carnaval de Recife e Olinda. Temos muitas horas de imagens e fotografias. É um material muito interessante, ainda mais sensorial do que o usado no Viajo… e que provavelmente no próximo ano nos debruçaremos nele.