Dublin ao Sul

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COM OLHOS OBLÍQUOS E SORRATEIROS
Dublin Ao Sul, de Isidoro Blaisten reúne contos repletos de neurose e perturbações verossímeis ao mal-estar pós-moderno
Por Rafael Dias

Há uma dualidade bem demarcada nos contos de Isidoro Blaisten. Por um momento, somos levados a crer na existência de um ambiente urbano cristalino, burocrático e asséptico de uma Buenos Aires pequeno-burguesa – um universo não muito distante de nossas metrópoles. E, como um furto, sutil e sorrateiro, caímos num mundo paralelo povoado por gente amoral, grotesca e valores de sordidez qualquer. Quando menos se percebe, já estamos presos a sua rede ou carapuça, com um animal indefeso. Até que resvala pelo exagero, esticando suas tessitura, e, num ponto extremo, ganha cores e tons escuros de um absurdo kafkiano. Ou, melhor, há quem o compare ao realismo mágico de seus conterrâneos Julio Cortázar e Jorge Luis Borges. Mas, diferente deles, suas histórias parecem soltar um grito mudo, a todo instante, sem perder a linha terrena: a realidade, ainda que sublimada, é inescapável.

Natural de Concórdia, província argentina de Entre Ríos, o escritor Isidoro Blaisten é um dos nomes mais festejados da literatura latino-americana contemporânea. Apesar de angariar vários prêmios, infelizmente é ainda pouco conhecido no Brasil, cuja indiferença cultural se explicaria pela posição geográfica do país, situado “de costas para a América Latina”, advertiu Octavio Paz. Com o lançamento da primeira tradução em português, pela editora Girafa, da coletânea de contos Dublin ao Sul, um de seus melhores livros e decerto o mais famoso, é provável que essa percepção mude. Deveria mudar, aliás. Com um acervo de doze obras publicadas, a primeira o livro de poemas Sucedió em la lluvia (1965), Blaisten faleceu em 2004, aos 71 anos, deixando a marca de um estilo trágico e ao mesmo tempo tênue, pontuado por ironia ácida e sagaz.

Escrito originalmente nos anos 1980, Dublin ao Sul reúne doze contos habitados por arquétipos com algum tipo de neurose ou perturbação, verossímeis ao mal-estar pós-moderno. Vemos um suicida com hora marcada para morrer, afundado na angústia de seus fluxos de pensamento, em “A Pontualidade É A Cortesia Dos Reis”, conto que abre a seleta; casais presos à sovinice do matrimônio e do consumismo, em “A Sede”; e um tio como escória da família, em “Tio Facundo”. Em suma, personagens céticos, à beira da falência e em busca de uma epifania mínima que seja. Mas os melhores contos são “A Salvação”, em que um homem vai à loja comprar algo que o salve, e “Vitorcito, Um Homem Oblíquo”, sobre um Gregor Samsa até alegre – por atingirem um nível de sarcasmo e grotesco com uma franqueza aterradora.

Uns encontram uma compensação, geralmente por meios escusos; a maioria cambaleia, no entanto, em círculos condenada ao degringolamento. Blaisten questiona o fatalismo a que se prendem; em alguns momentos insinua cortar a cortina de fumaça e névoa com estilete. Mas, no parágrafo derradeiro, tudo é trágico ou mesmo risível, como a própria vida, uma sucessão de erros (mais que acertos) e surpresas irônicas. O conto que dá título ao livro é bem emblemático quanto a isso. dublin ao sul Após ganhar um talk show sobre a vida e a obra de James Joyce, um homem de meia-idade larga mulher, filhos e sua vida tacanha de bancário para realizar a quimera de ter uma vida pródiga de realeza em um castelo em Dublin, na Irlanda. Pândego, iludido de novo e aprisionado em sua torre de marfim. Mais cáustico, impossível.

DUBLIN AO SUL
Isidoro Blaisten
[Girafa, 206 págs, R$ 35]

NOTA: 8