Dossiê Teatro em PE: Entrevista com Stella Maris: “montar espetáculos no Recife é matar um leão por dia”

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A pesquisadora e atriz Stella Maris Saldanha. (Divulgação).
A pesquisadora e atriz Stella Maris Saldanha. (Divulgação).
A pesquisadora e atriz Stella Maris Saldanha. (Divulgação).

Stella Maris Saldanha é uma das grandes atrizes do teatro pernambucano e a partir de 2008 também enveredou pelos caminhos da produção teatral por conta do projeto Transgressão em 3 Atos que estudou a trajetória de três importantes grupos locais, o Teatro Popular do Nordeste, o Teatro Hermilo Borba Filho e o Vivencial. Uma das metas do projeto foi a encenação de espetáculos relacionados a cada um dos grupos estudados e isso levou a atriz a conhecer de perto as dificuldades para fazer teatro no Recife hoje. Ela nos conta um pouco dessa experiência.

O Grito! – Nos últimos anos, além de trabalhar como atriz você também passou a produzir espetáculos teatrais para o projeto Transgressão em 3 Atos com a encenação das peças Os Fuzis da Senhora Carrar, de Bertolt Brecht; O Auto do Salão do Automóvel, de Osman Lins; e Puro Lixo, de Luis Reis. Então para você como foi essa experiência de produzir teatro no Recife?
Stella Maris – É matar um leão por dia. Porque você passa por diversas dificuldades. A primeira delas é a falta de casa de espetáculos. Nós temos poucos teatros, alguns fechados e os que estão funcionando são disputadíssimos. E além de você não ter pauta, quando consegue, esses equipamentos estão com muitos problemas. Por exemplo, nós estivemos em temporada com Puro Lixo no Teatro Hermilo Borba Filho e precisamos alugar equipamento de luz para poder atender o espetáculo. É a segunda vez que eu vou para esse teatro e que eu tenho que pagar por fora a iluminação porque o que há no teatro não atende as necessidades do espetáculo.

E também você tem poucas casas de pequeno e médio porte que atendem as necessidades da produção local. Um espetáculo local dificilmente vai abrir temporada no teatro Luiz Mendonça, no Parque Dona Lindu, ou no Teatro de Santa Isabel. Existem equipamentos culturais que são ótimos para produções de maior porte, em geral para os espetáculos que vem de fora, então para os locais você tem poucas casas adequadas para a realidade dos orçamentos. Outra dificuldade é a cultura do convite. Você passa meses trabalhando na preparação de um espetáculo e quando estreia, com preços muito modestos, as pessoas não se dispõem, de certa forma, a pagar por aquele espetáculo, havendo uma demanda exagerada por convites. Vou voltar ao exemplo de Puro Lixo que é resultado de um projeto que vem sendo desenvolvido desde 2008, primeiro com uma pesquisa e em seguida com a montagem de três espetáculos. Nós estamos em 2016 montando o terceiro e os preços praticados na bilheteria foram de apenas R$ 20 e R$ 10. Mesmo assim tivemos uma demanda enorme por convites, querer ver um espetáculo com um esforço enorme por trás dele que demanda elenco, figurino, cenário, iluminação, pessoal técnico e a pessoa não se dispor a pagar 20 reais para assisti-lo é um absurdo.

Existem também dificuldades para se encontrar espaços para ensaios?
Stella Maris – Existem pouquíssimos e eles são pagos. Eles oneram a produção. Porque quanto mais tempo de ensaio para você burilar o espetáculo, maior vai ser o custo de manutenção. Alguns grupos de teatro alugam seus espaços, mas desde que eles próprios não estejam ocupando. Às vezes conseguimos algum espaço por gentileza como foi o caso de Puro Lixo quando usamos os estúdios da TV Universitária. Você também tem dificuldades para ensaiar no próprio teatro onde a peça vai entrar em cartaz já utilizando os cenários, figurinos, etc. O ideal era termos antes da estreia pelo menos cinco ensaios com já tudo pronto, no entanto só nos são oferecidos um ensaio.

Voltando então a esse momento anterior a estreia, você poderia falar então dos custos de produção de um espetáculo nesse porte que você apontou, ou seja uma produção local de porte médio? E também sobre o apoio do Funcultura para a realização desses projetos?
O Funcultura hoje premia dez espetáculos. Os espetáculos tem um custo de montagem e um custo de manutenção. Então o Funcultura disponibiliza o dinheiro a partir do projeto que você apresenta cobrindo uma temporada de dez apresentações, depois disso você tem que se manter por sua conta. O teto do fundo é em torno de R$ 100 mil. Parece muito dinheiro, mas quando você vai pagar todo mundo, falta dinheiro. Então você tem que negociar cachês baixos para o elenco, para a equipe técnica. Ou você faz assim ou não monta. Claro que você pode partir para um esquema de guerrilha com montagem barata, mas isso vai interferir diretamente nos resultados estéticos porque tudo passa a ser feito no improviso. Quando não tem jeito você faz isso, mas é para não morrer de desespero.

Cena de Os Fuzis da Senhora Carrar, com Stella Maris. (Divulgação).
Cena de Os Fuzis da Senhora Carrar, com Stella Maris. (Divulgação).

E a arrecadação da bilheteria não é suficiente para manter um espetáculo em cartaz?
Se você tem uma equipe técnica grande, um elenco médio de cinco atores, por exemplo, para um teatro de 90 lugares mesmo que você lote todos os dias com o ingresso a R$ 20 você não cobre o custo. Então quando acaba o dinheiro do Funcultura o espetáculo pode estar bombando de sucesso, como foi o caso de Puro Lixo, e você tem que parar as apresentações porque ou você não tem pauta ou o dinheiro que você vai arrecadar não cobre o custo do espetáculo.

E além do financiamento oficial, não existe captação de recursos por outros meios?
Existe, mas é muito difícil. Você encontra parceiros aqui e ali que vão te dar cartazes, um pouco de maquiagem, em troca de publicidade, mas ela não é farta. E quando você trabalha fora do esquema do teatrão comercial, com estrelas da televisão que levam grande público aos teatros, é isso que nos resta.

Se as produções locais fossem mais ousadas em termos comerciais usando, por exemplo, atores locais que hoje estão fazendo sucesso na televisão para atrair público a situação poderia melhorar?
Seria uma alternativa, mas não há garantia de que isso se consolide porque temos um problema, no meu ponto de vista, que é a falta de plateias para os espetáculos. Eu acho que o teatro sozinho não faz plateias para si mesmo. Isso é resultado de um contexto cultural e de informação maior. Então se você tem uma escola melhor, pessoas que cultivam a leitura, aí você tem um panorama mais favorável. Mas a nossa educação e formação cultural é muito anêmica e por consequência não temos uma plateia que banque e sustente o teatro sem que ele precise dos editais ou que seja esse teatro de guerrilha.

Mas será que as pessoas não acham que pelo fato dos espetáculos locais já receberem financiamento estatal eles já estão pagos e por consequência os ingressos devam ser baratos?
O problema é que elas não sabem que o dinheiro dos editais não é suficiente, paga apenas uma parte da produção e você precisa da bilheteria para saldar as dívidas. Em Puro Lixo em dez apresentações com casa lotada tivemos em torno de mil espectadores, e eu precisei do dinheiro que entrou para pagar o equipamento de luz alugado e para pagar despesas que não entram nas rubricas estabelecidas pelo edital do Funcultura. E digamos que mesmo que o dinheiro do edital pagasse tudo, pense no esforço das pessoas que estão trabalhando numa montagem durante meses a até anos. Será que elas não valem R$ 20, enquanto que para espetáculos com atores globais paga-se até R$ 200 para assisti-los?

Cena de Puro Lixo. Foto: Ana Araújo/Divulgação.
Cena de Puro Lixo. Foto: Ana Araújo/Divulgação.

Uma coisa que observo é que o nosso público para teatro é muito pequeno. Nas apresentações vemos quase sempre as mesmas pessoas, sobretudo nas montagens de autores mais sofisticados com encenações esteticamente mais elaboradas.
Eu concordo que muitas vezes o público principal é formado por pessoas também ligadas a classe teatral e que tem o hábito de ir ao teatro, mas nas montagens de Os Fuzis da Senhora Carrar e em Puro Lixo eu tive experiências muito boas. Em ambas eu vi uma plateia bem diversificada com espectadores jovens e que não são pessoas de teatro e isso é algo para se comemorar porque é sinal de que estamos conseguindo estabelecer uma comunicação para o alargamento do público que frequenta teatro.

Esse é um caminho para melhorar a situação do nosso teatro?
Sim, é um caminho. As pessoas de teatro têm que buscar alternativas de sobrevivência e de conquista de plateia, pensar como dialogar com setores da sociedade para trazer as pessoas para essa interlocução com as artes cênicas. E no momento, por tudo isso que o Brasil está passando, é urgente que o teatro possa estar presente com sua capacidade de ser ousado, rebelde. O teatro na década de 1960 foi assim e talvez tenha chegado a hora dele ser isso outra vez. Ser provocador e ousar como estão fazendo os grupos que participaram do festival Outubro ou Nada, grupos que atuam como eu falei antes, fazendo um “teatro de guerrilha”. Embora para mim isso não queira dizer voltar a um teatro pobre com spot-lata, mas repensar a estética do teatro, sofisticá-lo como fez por exemplo João Denys com Os Fuzis da Senhora Carrar. Ele pegou as diretrizes da montagem de Marcus Siqueira de 1978, a qual estávamos referenciando pela proposta do projeto Transgressão em 3 Atos, e as retrabalhou. Essa também foi a lógica usada por Antonio Cadengue na direção de Puro Lixo que ressignificou o teatro feito pelo Grupo Vivencial. E é esse grito que temos que dar se quisermos mudar.

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