Crítica – TV: Santo Forte inova ao misturar drama policial com candomblé

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Divulgação/AXN/Moonshot.
Foto: Divulgação/AXN/Moonshot.
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AXN exibe drama policial brasileiro sobre taxista que tem corpo fechado

Por Luiza Lusvarghi
De São Paulo

Santo Forte, a primeira série brasileira da AXN, canal da Sony, estreou no domingo, dia 30 de agosto, e traz como protagonista um jovem taxista, João da Cruz Forte, vivido pelo ator Vinícius de Oliveira, que se tornou uma atração mundial ainda criança, ao estrelar Central do Brasil, no papel do menino Josué. A primeira temporada vai ter 13 episódios, que serão exibidos todo domingo, às 21 horas, e que estarão disponíveis no canal AXN no Youtube.

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Na trama, João, que é casado, pai de dois filhos, e mora no subúrbio, vai acabar atraindo a atenção do jornalista Fábio (Guilherme Dellorto), que não acredita em espíritos e nem candomblé, mas vai se interessar pouco a pouco pela vida dupla do taxista, envolta em mistério. O pai de santo de João, Celso, é vivido por Thiago Justino, o dono do bar do Zé, uma das principais locações da história.

O bordão “todo destino tem seu preço” acompanha o taxista a cada episódio. Neles, João, que obteve a graça de ter o corpo fechado ao sofrer um acidente mortal no passado, deve tentar ajudar a resolver os problemas de todos os seus passageiros, para pagar a sua dívida com as entidades. O roteiro é assinado por Marc Bechar, nascido nos EUA e radicado no Brasil, que veio para cá como diretor de produção da Columbia TriStar e participou do roteiro de outro seriado criminal, 9 MM; São Paulo, para a Fox, também realizado em coprodução com a Moonshot Pictures, de Roberto Dávila. Santo Forte exibe nas telas o Rio de Janeiro que não se vê nos cartões postais, bairros como Glória e Santa Teresa, o centro e as favelas da “Cidade Maravilhosa”, mas mantém o enfoque nas classes médias baixas do subúrbio. Mas sem nenhum sensacionalismo. Mesmo as cenas com o pai de santo, que é proprietário de um boteco, são da maior naturalidade, totalmente integradas à realidade do personagem e do cotidiano da cidade.

Quando o passageiro paga a corrida em dinheiro, João tem visões sobre suas vidas, seus problemas. E como um misto de conselheiro e vingador, auxilia seus clientes sem esperar nada em troca. Esta é a sua dívida. João é casado, com Dalva (Laila Garin), e seus poderes sobrenaturais lhe impedem de cumprir com sua missão de pai e esposo da forma como gostaria. Quando chega em casa, está esgotado. Os tiros que toma em suas aventuras podem não lhe tomar a vida, mas deixam o rapaz sem energias.

O diretor e produtor Roberto Dávila falou em entrevista sobre a tendência ao realismo fantástico da série. Talvez na visão de um estrangeiro, sim, ela possa ter essa conotação. Mas o que se revela nas imagens está mais próximo da temática que Eduardo Coutinho explorou em Santo Forte, o documentário, do que de Gabriel Garcia Marques em Cândida Erendira e sua Avó Desalmada. Em comum, apenas a ideia de trabalhar com crenças e tradições populares. A religião é a saída para os excluídos que não possuem nada além do próprio corpo. A fé faz que com eles caminhem sem medo por uma vida sem atrativos e muitas vezes perigosa. Não há nada de extraordinário na vida de João, a não ser para quem não tem a mesma fé do protagonista, que por sinal, declarou ser praticante de candomblé. Ao menos, do ponto de vista da narrativa, extremamente naturalista. E para quem não acredita em espíritos, funciona como excelente conduto de ficção.

Divulgação/AXN/Moonshot.
Divulgação/AXN/Moonshot.

A série tem na história de João uma narrativa fechada com começo, meio e fio, mas tem casos diferentes a cada episódio, que devem ser solucionados por João, um investigador pouco usual. No primeiro, ele ajuda uma senhora a escapar das garras de um miliciano a quem seu neto deve dinheiro. Não se sabe ainda se todos os episódios serão tão interessantes quanto o primeiro. No elenco também estão Cassiano Carneiro (Sítio do Pica Pau Amarelo), que interpreta Barracuda, um agiota que ora é inimigo de João, ora seu aliado; Karen Mota, como a esposa de Cesário; Roberto Frota, como Manuel, pai de Dalva e Cesário; e Tamara Taxman (Copa Hotel), como Moa, a vizinha de Dalva que a ajuda a cuidar das crianças. O primeiro episódio conta com a participação de Sônia Guedes, como a passageira que recebe ajuda de João.

Hits policiais

O canal trabalha quase sempre com séries policiais, de suspense e de ação, e com séries híbridas, que mesclam diversas referências, como a badalada The Strain, de Guillermo del Toro. E, apesar da produção classificar Santo Forte como série dramática, a estrutura narrativa é a de um drama policial, trazendo, no entanto, um investigador que não é comum no modelo hollywoodiano consagrado pela televisão nos cop shows, mas bastante frequente no noir.

Ter um protagonista com o corpo fechado, entretanto, não é páreo para Bogart, nem para McMurray. Esse o toque genuinamente brasileiro na sua gênese. Que pode, entretanto, oferecer outra leitura em outros mercados. Afinal, os poderes sobrenaturais estão presentes em séries dos EUA como a recém-lançada The Whispers. A diferença é que a moral anglo-americana aceita melhor a ideia do demônio do que o Exu, que não é necessariamente mal.

Policiais-sobrenaturais no Brasil

Nelson Pereira dos Santos, forte influência do Cinema Novo brasileiro, autor do consagrado Rio 40 Graus, tem uma obra bastante significativa e pouco compreendida, chamada O Amuleto de Ogum, de 1974. O filme narrava a trajetória de Ney, um nordestino de corpo fechado, na Baixada Fluminense, que adere à quadrilha de Severiano, e mais tarde, rompe com o chefe, aliando-se a uma quadrilha de pivetes.

Intrigante, e bem mais sombrio do que esta Santo Forte, contudo, não deixa de ser uma referência ‘desglamurizada’ de abordagem do ocultismo e das religiões afrodescendentes. Na trama de Nelson, não existem discussões filosóficas sobre crenças, e a questão do corpo fechado é apresentada de forma quase banal.