Crítica HQ: O Apanhador de Nuvens, de Béka e Marko

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Foto: Divulgação/Nemo

O Apanhador de Nuvens traz jornada cultural com clima de “Sessão da Tarde”

Por Rodrigo F. S. Souza

Certos temas tem um caráter universal, não importando em que contexto e cultura eles se manifestam. É graças a arquétipos como amizade, sobrevivência e tradições culturais, presentes em grandes histórias, que O Apanhador de Sonhos, lançado ano passado pela editora Nemo funciona tão bem como diversão e jornada lúdica, que revela um pouco de uma cultura sobre a qual muitos de nós sequer têm conhecimento.

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Nesta HQ de rápida leitura acompanhamos a história de uma vila dogon, povo que vive no centro de Mali, na África Ocidental, apresentada do ponto de vista de Amakalá e Iemoná, dois meninos que se consideram melhores amigos um do outro. O local passa por uma seca que vem se arrastando há muito tempo, e ameaça a colheita daquele ano e a sobrevivência das famílias que ali vivem. Entre visitas que Amakalá recebe do espírito da Máscara Que Transmite as Novidades, e um passeio que faz até as grutas dos escaladores coletores de guano – adubo usado pelos dogon em suas colheitas, à base de fezes de pássaros – o menino conclui que a seca é devido à posição baixa do Apanhador de Nuvens, um objeto metálico que lembra uma antena, o qual, segundo a crença dos dogon, é capaz de atrair nuvens de chuva.

Como se o problema da vila com a escassez de água não fosse o bastante, depois de Amakalá, com a ajuda de Iemoná, retirar o apanhador do Altar de Binou, e tentarem uma tarde inteira jogá-lo até as nuvens, o objeto místico é roubado do lugar onde o escondem, o que deixa os anciões da vila muito preocupados. Numa reunião eles decidem que Amakalá e Iemoná tem vinte e quatro horas para recuperarem o apanhador de nuvens, caso não queiram ser punidos pelo problema que geraram.

O carisma de Amakalá e Iemoná, aliado à esperteza e inocência dos garotos, torna a leitura muito leve e divertida. A história dá conta de apresentar vários elementos do folclore local, como a Máscara Que Transmite Novidades, as adivinhações baseadas nas marcas deixadas por um coiote, o apanhador de nuvens e a dança da chuva de maneira bem orgânica, sem em nenhum momento adotar um tom didático a fim de explicá-los ao leitor, o que é uma das maiores qualidades da obra. O ritmo e o tom da narrativa lembram uma aventura juvenil da Sessão da Tarde em quadrinhos, com o diferencial de que aprendemos através dela sobre a cultura e agricultura do povo dogon.

O belo e expressivo traço de Marko, cores de Emmanuel Pinchon. (Divulgação/Nemo)
O belo e expressivo traço de Marko, cores de Emmanuel Pinchon. (Divulgação/Nemo)

Sobre os autores, vale informar que Béka é um pseudônimo dos franceses Bertrand Escaich e Caroline Roque, e que Marko é o pseudônimo do desenhista Marc Armspach, com quem os autores fizeram A Narradora das Neves e As Crianças das Sombras, outros dois álbuns lançados pela editora Nemo com esta mesma proposta de apresentar diferentes culturas do mundo por meio de histórias em quadrinhos ricamente ilustradas e narradas com leveza e bom humor. Infelizmente nenhuma destas informações consta no expediente do livro, figurando como única mancada editorial da Nemo.

As ilustraçoes de Marko merecem destaque. Dono de um traço levemente caricato, bastante expressivo e detalhista na medida certa, ele confere personalidade a cada um dos protagonistas e coadjuvantes, por menores que sejam as participações e importância deles na história. O mesmo pode ser dito a respeito dos cenários que desenha, cheios de pequenas minúcias que dão maior credibilidade às paisagens naturais e casas rústicas, que compõem as vilas de pedra construídas nas encostas das montanhas desérticas. E tudo isto ganha mais vida e tridimensionalidade com as belas cores e texturas usadas por Emmanuel Pinchon, cujo domínio sobre luzes, sombras e tons é exemplar. A arte lembra muito, tanto em estilo quanto na qualidade da colorização, a premiada HQ Daytripper, dos brasileiros Fábio Moon e Gabriel Bá.

Amakalá e a Máscara Que Transmite Novidades (Divulgação/Nemo)
Amakalá e a Máscara Que Transmite Novidades (Divulgação/Nemo)

Outra obra à qual O Apanhador de Nuvens remete, esta cinematográfica, é o longa em animação A Viagem de Chihiro. Reparem no quanto a representação onírica do Máscara Que Transmite Novidades lembra o deus Sem Rosto, espírito mascarado que se manifesta em determinados momentos para a protagonista da famosa animação dirigida por Hayao Miyazaki. O próprio estilo de desenho de Marko lembra o de um desenho animado, tanto pelo visual quanto pela vivacidade e movimento que transmite.

Além dos toques de aventura, mitologia e jornada cultural, os autores criam bons alívios cômicos ao longo da narrativa, que divertem sem desviar-se da trama em andamento. Um bom exemplo são as insistentes batidas de cabeça de um dos anciões na Casa dos Discursos: gags visuais que não prejudicam o ritmo da história.

Impresso em couché, o que valoriza muito a arte, mas sem dar-se ao luxo de publicá-la com uma encarecedora capa dura – desnecessária aqui, por tratar-se de uma história de apenas 48 páginas – o custo-benefício compensa pela diversão de qualidade que O Apanhador de Sonhos proporciona. E de quebra ainda desperta a vontade de ler os dois trabalhos anteriores de Béka e Marko.

apanhador-de-nuvensO APANHADOR DE NUVENS – UMA AVENTURA NO PAÍS DOGON
De Béka (roteiro) e Marko (desenhos)
[Nemo, 48 págs., R$ 24,00 / 2013]
Tradução: Fernando Scheibe

Nota: 8,0