Crítica – HQ: Ghetto Brothers narra a gênese do hip hop através da guerra das gangues de NY

A gênese do hip hop é contada na HQ de Julian Voloj e desenhada por Claudia Ahlering, Ghetto Brothers – Uma Lenda do Bronx, lançada em maio pela editora Veneta. Estamos no início dos anos 1970 e a violência em Nova York segue crescente, sobretudo motivado pelas tensões causadas pela rivalidade das gangues e suas disputas de território. Foi a pacificação desses conflitos que possibilitou o nascimento de uma cultura que se transformaria em uma das bases da cultura popular do século 20, o hip hop: o que inclui o rap, grafite e as danças de rua.

Os Ghetto Brothers do título eram um grupo criado por dois irmãos porto-riquenhos. No seu auge a gangue chegou a ter 2 mil membros, o que os transformou na maior força do South Bronx, em Nova York. A disputa por territórios era acirrada e contava com grupos igualmente fortes como os Black Spades, Seven Immortals, Savage Skulls, entre outros.

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O ponto de virada da narrativa das gangues de Nova York nos anos 1970 foi o assassinato de um dos membros do Ghetto Brothers, Black Benjie, em 2 de dezembro de 1971, em uma malfadada tentativa de estabelecer a paz entre os grupos da região. O fato expôs a fragilidade do convívio daquelas forças e acendeu um pavio que estava à espreita por anos. Mas o que parecia ser uma declaração de guerra serviu de mote para uma das mais impressionantes histórias de como a paz pode também pode ser uma demonstração de resistência contra o sistema.

Benjy Melendez, líder dos Ghetto Brothers, decidiu convocar uma reunião com os líderes das gangues novaiorquinas para fechar o histórico acordo de paz. O evento teve tanto impacto que foi televisionado e ganhou destaque na imprensa local – a mídia, convenientemente, cobria as tensões das gangues de maneira distanciada e pouco crítica. Foi essa paz que possibilitou o surgimento de uma nova cultura, baseada em festas que congregavam membros de diversas facções. O líder da temida Black Spades rebatizou o grupo como crew Universal Zulu Nation e passou a discotecar em festas com o nome de Afrika Bambaataa, se transformando em uma lenda nos anos seguintes. A trégua entre as gangues do Bronx foi percebida como algo maior: uma resposta de grupos marginalizados contra uma sociedade excludente.

Nascido em 1952 em San Juan, Porto Rico, Melendez mudou-se com a família para o Greenwich Village, em Nova York. Eles foram expulsos pelo plano do urbanista Robert Moses, um higienista que transformou bairros populares em Manhattan em enclaves para ricos brancos de classe média. Os afro-americanos e os porto-riquenhos, bem como muitos imigrantes, tiveram que se estabelecer em áreas como Bronx, sem transporte público de qualidade, segurança, oportunidades de empregos e outras benesses garantidas no tal “sonho americano”. Quando Melendez era adolescente, o bairro já tinha sofrido com a desindustrialização e o abandono de brancos da área. Com isso, diversos governos viraram as costas para o bairro, que sofreu com falta de investimento a partir de 1960.

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É neste contexto que surgem as gangues do Bronx, formadas por jovens sem muita perspectiva interessadas em ocupar um vácuo de poder causadas pelo abandono do Estado na região. Cada facção dominava uma região e seus membros eram identificados pelo logotipo das jaquetas. Os Ghetto Brothers tinham como símbolo três latões de lixo, o que simbolizava a decadência do South Bronx no período. “Você sempre saía de casa pensando que aquele poderia ser o último dia da sua vida”, lembra o personagem principal no início da HQ. “E aqueles também foram os dias mais felizes da minha vida”.

A HQ conta a história de Benjy Melendez através de três eixos que se interligam com a pacificação das gangues e o nascimento da cultura hip hop. O principal deles é sua relação com os Ghetto Brothers e o Bronx, através de uma narrativa rica em detalhes, como nome de pessoas, ruas e acontecimentos reais. A segunda camada da trama diz respeito à busca pela própria identidade do protagonista, sua relação com o nacionalismo portoriquenho e a descoberta de sua ancestralidade judaica. Por fim temos sua relação com a namorada (e depois esposa) Mei-Lin. A HQ vai até depois do dissolução das gangues, mostrando esse novo momento de Nova York, já nos anos 1980.

Benjy Melendez, nos anos 1970 e hoje. (Divulgação/Julian Voloj).
Benjy Melendez, nos anos 1970 e hoje. (Divulgação/Julian Voloj).

A história de Melendez e sua trégua inspirou vários filmes como Warriors – Os Selvagens da Noite e diversos livros. A mesma história contada aqui por Voloj e Ahlering é tema do documentário Rubble Kings, disponível no Netflix. O filme, no entanto, fica mais na banda que leva o nome da gangue, mencionada apenas rapidamente na HQ. Com apenas um único disco lançado, Power!/Fuerza!, o Ghetto Brothers trazia a explosão daquele Bronx que quase viveu uma guerra civil. O álbum foi relançado em 2014 pela Truth & Soul.

Ghetto Brothers, a HQ, é um documento importante sobre um dos maiores movimentos culturais do Ocidente e revela muito sobre injustiças vividas por negros e latinos no império americano. A arte de Claudia Ahlering, com falta de proporção nos personagens e pouco ritmo em alguns momentos, pode atrapalhar alguns leitores. Há uma impressão geral de falta de organização do roteiro no geral. Alguns quadros diminutos contam uma passagem importante da trama, enquanto outros painéis de página inteira repetem fatos já narrados anteriormente. Mas mesmo essas falhas na execução não tiram o brilho de um dos momentos mais fascinantes de nossa história recente.

A edição da Veneta, com tradução de Alexandre Matias e Mariana Moreira Matias, traz imagens dos personagens reais, entrevistas e uma introdução assinada pelo crítico especializado em rap, Jeff Chang.

Compre a HQ na Amazon ou no site da Veneta.