Crítica-HQ: Alcimar Frazão e o absurdo da vida em Cadafalso

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Fotos: Divulgação.
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HQ existencialista traz cinco histórias com participação de Mutarelli, Dalton Cara e Magno Costa em um dos projetos criativos mais interessantes dos quadrinhos este ano

cadafalso2Nesse 2018 que corre, o sentimento de absurdo, de uma vida desprovida de sentido, mundo descarrilhado, ficou muito evidente. Cadafalso, nova HQ de Alcimar Frazão, ainda que não trate diretamente dos eventos políticos e sociais do país, absorve bastante dessa atmosfera.

O livro reúne cinco histórias com um tom existencialista para falar da vida absurda em diferentes momentos da humanidade, tratando de temas como extremismo, religião, arte. Frazão chamou três nomes importantes dos quadrinhos brasileiros para coassinar roteiros: Lourenço Mutarelli, Dalton Cara e Magno Costa.

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Em todas as histórias o argumento se apoia na junção entre o tom absurdo e existencial da vida e o tom grotesco vivido pela humanidade em diferentes momentos da história. O gibi vai da Florença do século 16 até os dias atuais, em Porto Alegre, sempre se baseando em uma experiência que parece desprovida de sentido, mas que apenas reafirma a complexidade que é a experiência humana. Frazão deu tantas nuances aos seus argumentos que se faz necessário, talvez, dois momentos de leitura do gibi: um pelo impacto visual e narrativo, muito em parte pelo lindo traço em p&b do autor e outro momento pela reflexão que fica retida a partir das histórias aqui.

A primeira leitura mostra que estamos diante de um dos mais ousados projetos em quadrinhos deste ano, com um dos melhores desenhos de Frazão, que é autor do ótimo O Diabo e Eu (2015), entre outros. Gostei muito do modo como ele oscila, muitas vezes bruscamente, os planos em close-up, mostrando detalhes, com os painéis abertos e cheios de detalhes. A cena da história “Tempus Fugit”, com a metrópole mostrada em página dupla contrastando com a pequena tela do celular marcando uma passagem de tempo, é matadora. Tem também um uso diversificado de enquadramentos, que se adapta ao ritmo da história, por vezes bem sóbrio, convencional, e em outras com vazamentos dos personagens dos requadros ou mesmo sobreposições. Unindo tudo isso uma base preta na página inteira, que é a característica noir de Frazão.

A segunda leitura leva a pensar sobre questões pesadas, doídas, do estado do mundo e como reagimos a ele. O livro tem claramente essa vocação existencialista, de confrontar éticas e valores que parecem não fazer sentidos. Lançado em um período tão desequilibrado da democracia brasileira, a HQ ressoa de maneira esquisita, como se sofresse uma influência dessa falência do projeto civilizatório do País. Os personagens do livro se veem o tempo todo confrontados com o absurdo da vida e reagem a ele de maneira consciente, sendo levados a conviver com esse absurdo e buscar saídas, ora irônicas, ora revoltosas, para seguirem adiante.

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Com isso Cadafalso rompe com uma idealização romântica de que a liberdade e a felicidade possam ser alcançadas pela negação do absurdo, pela busca de um suposto estado de normalidade. Na história “Amar a Deus”, em parceria com Mutarelli, vemos um mestre renascentista buscando a perfeição, nem que para isso precise manter seus modelos à sua disposição eternamente (no caso, mortos). Em “España, 1937”, escrita ao lado de Magno Costa, um anarquista rememora seu período lutando contra as forças de Franco na guerra civil espanhola. Após levar um tiro quase letal, o soldado passa a usar de cinismo para lidar com a sempre complicada disputa ideológica entre anarquismo, comunismo, fascismo. O fato do gibi mostrar os inimigos da república como animais mostra como essa obra é cheia de nuances.

O quarto conto, meu preferido, traz um motoboy em 2016, que está sempre atrasado. Lidando com a entropia, sempre vencido pelo tempo, pelo caos da cidade, a história de Dalton Cara é cheia de ritmo, traz um traço de Frazão mais fragmentado, mais sujo, buscando um tom até onírico em alguns momentos. As duas histórias finais, inspiradas livremente Eróstrate (1939), de Jean-Paul Sartre, tenta trazer um desfecho conceitual às reflexões que o autor tratou ao longo do gibi, com um protagonista, sem resignação, aceitando o absurdo até suas últimas consequências (qualquer pista que eu der aqui do desfecho estragaria a leitura).

O absurdo nessa HQ de Frazão tem muito de Sartre, filósofo que refletiu bastante sobre o desconforto em relação à nossa própria existência (o romance A Náusea faz um link interessante com esse gibi) e também de Albert Camus, autor que igualmente situou seus personagens em um mundo absurdo. Sua leitura cheia de simbolismos e com muitas nuances no roteiro fazem de Cadafalso um dos mais bem construídos projetos criativos dos quadrinhos brasileiros atuais. A arte de Alcimar, com seu preto e branco bastante denso, reafirmam sua assinatura, seu estilo próprio dentro do cenários de HQs do Brasil.

A edição da Mino é bem bonita, com capa em baixo relevo, boa impressão e um posfácio que faz uma leitura das influências filosóficas do gibi. É legal ver que a editora está investindo no autor – ela relançou O Diabo & Eu, que tinha sido lançado anteriormente de forma independente.

Em um cenário de quadrinhos como o nosso, em que o crescimento de lançamentos e intensa movimentação caminha para uma afirmação de estilos criativos e identidade artística própria do país, a existência de um nome como Alcimar Frazão é algo a ser celebrado. A cada novo livro vemos um autor com uma união muito precisa de narrativa, arte e, talvez mais importante, clima.

Temos hoje no Brasil muitos nomes que reafirmam uma autoralidade que é muito salutar para o desenvolvimento de qualquer arte, e Frazão é um dos nomes mais interessantes de se acompanhar.

CADAFALSO
De Alcimar Frazão
[Mino, 128 páginas, R$ 59,90 / 2018]