Crítica-HQ: Adaptação de O Idiota, de André Diniz, tem ousadia estética e vida própria

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8.5

Os desafios de transpor um clássico da literatura para os quadrinhos são conhecidos. Entre os maiores temores de fracasso está o fato de ser soterrado pelo poder inventivo da obra original com evidente perda de relevância. No caso de O Idiota, de André Diniz, baseado no texto clássico do russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881), isso não aconteceu. O quadrinista brasileiro criou um trabalho independente, com um vigor estético que faz uso da experimentação dentro da linguagem das HQs.

Entre as inspirações no desenho de Diniz estão a xilogravura (o que é bem conhecido por quem acompanha seu trabalho) o cordel e a arte russa conhecida como “lubók“. E sua adaptação ainda se colocou outro desafio: a quase ausência de texto, com raríssimas aparições de balões e nenhum recordatório.

Dostoiévski é puro texto, um autor verborrágico conhecido por ter bastante controle de todos os aspectos da narrativa, desde as incursões psicológicas de seus personagens até o panorama político-social que trazia para suas obras. Suas cenas são cheias de drama, com vários momentos lapidados com o intuito de fisgar o leitor à leitura. Por isso é de se parabenizar o êxito de André Diniz em se esquivar de tentar transpor todo o palavriado, descrições de cenas e cenários que são tão típicos da literatura russa clássica.

O Idiota é um dos cinco romances considerados essenciais de Dostoiévski, um autor prolífico que fez da escrita sua labuta (ao contrário de contemporâneos diletantes ligados à aristocracia). Ao lado de Crime & Castigo, Os Irmãos Karamázov, Os Demônios e O Adolescente, o livro fez parte de um breve período que vai de 1866 a 1880. Essa obra básica dostoievskiana contém todas as características que fizeram do escritor um nome essencial da literatura mundial, um gênio que trouxe inquietação às mentes de seus leitores. Como disse o crítico Harold Bloom, o autor foi indispensável por “denunciar o nosso egoísmo, a nossa crueldade, as nossas hipocrisias e, sobretudo, a paralisante consciência de nós”.

Diniz se conecta com ao cerne de Dostoiévski enquanto gênio criativo. As páginas da HQ transportam o leitor para um clima insalubre de temor, angústia e loucura. Mas em se tratando de O Idiota há também um toque de humor e ironia. É que Dostoiévski pintou toques quixotescos em seu personagem, um príncipe herdeiro de coração puro internado em um hospício.

A trama fala do jovem príncipe Míchkin que retorna à Russia após anos internado em um sanatório onde se tratava da epilepsia. Ele acaba envolvido em um triângulo amoroso com o sombrio Rogójin e a bela Nastácia Filíppovna, o que inclui ainda um crime e muitos desenlaces novelescos e reviravoltas. Mas, mesmo imersos nessa trama em tom de novela, os personagens possuem muitas nuances e suas motivações são difíceis de serem decifradas logo de cara.

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No pano de fundo, o autor refletia a instabilidade da Rússia que via a decadência de seu sistema político baseado na servidão. O autor tratou com ironia uma sociedade desesperada em não perder seus privilégios frente às transformações que estavam surgindo.

Os traços pesados de Diniz, muito inspirados pela xilogravura, dão um contorno ainda mais dramático ao texto de Dostoiévski. As formas geométricas, o riscado duro e os requadros com molduras conferem uma personalidade própria a essa adaptação. Diniz é muito influenciado pelo mestre Flavio Colin (1930-2002), autor de Estórias Gerais e Caraíba, entre outros, mas seu estilo é ainda mais rústico. Há também um uso interessante do expressionismo em algumas passagens, sobretudo pelo contraste do branco e preto que remetem ao cinema alemão dos anos 1920 e ao artista brasileiro modernista Oswaldo Goeldi (1895-1961). O próprio Goeldi, inclusive, ilustrou edições anteriores de O Idiota lançadas no Brasil nos anos 1940.

O Idiota de André Diniz faz parte de uma nova fase das adaptações literárias para os quadrinhos no cenário brasileiro de HQs. Depois de um momento de profusão de lançamentos e pouca qualidade agora temos trabalhos mais esteticamente ousados como esse. Uma HQ que serve bem à originalidade dos dois autores.

O IDIOTA
De André Diniz
[Quadrinhos na Cia/Companhia das Letras, 418 páginas, R$ 59,90]

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