Crítica – Cinema: A Seita, de André Antônio

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Pedro Pinheiro estrela "A Seita", de André Antonio. (Divulgação).
Pedro Pinheiro estrela "A Seita", de André Antonio. (Divulgação).
Pedro Pinheiro estrela “A Seita”, de André Antonio. (Divulgação).

Um dos aspectos mais positivos dos filmes produzidos pelo coletivo Surto & Deslumbramento é a capacidade de trazer à tona temas e olhares sobre o mundo que, em geral, são vistos com desdém pelo cinema mainstream. Ao assumirem a frangagem como ação expressiva, Chico Lacerda, Rodrigo Almeida, Fábio Ramalho e André Antônio abrem um leque de possibilidades narrativas e visuais onde, se por um lado a experimentação e o deboche dão o tom, por outro, seus trabalhos são também um lugar de desejos expostos sem frescuras, de uma criatividade que busca o apuro estético e de indagações irônicas e questionadoras capazes de provocar as mais variadas reflexões. E é isso que vamos encontrar em A Seita, o novo trabalho do grupo com direção e roteiro assinados por André Antônio.

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O projeto foi premiado pelo Funcultura na categoria curta-metragem, mas acabou se transformando em um longa. Ele é ainda o primeiro trabalho do coletivo que não foi feito apenas com recursos próprios. O fato de ter um orçamento maior e recursos técnicos mais sofisticados, no entanto, não distanciou o resultado final daquilo que o Surto & Deslumbramento assume como sua maior pinta. Ou seja, um cinema que busca se distanciar da heteronormatividade e faz dos corpos, das palavras e dos gestos do imaginário gay uma deliciosa mistura de provocação e tomada de posição onde o inusitado é regra e os excessos são sempre bem vindos.

A Seita é uma ficção científica que se passa no Recife em 2040, quando um jovem habitante de uma colônia espacial resolve voltar para a Terra. Aqui ele encontra uma cidade quase fantasma e passa a viver como um dândi, num palacete semi abandonado. Num cenário de cortinas vermelhas em que a estética kitsch e as alegorias camp andam abraçadinhas e trocando carícias, o recém-chegado passa a maior parte das horas do seu dia lendo desde livro de poesias a histórias em quadrinhos, bebendo chá em xícaras de porcelana finamente decoradas ou simplesmente contemplando o mundo pela janela. Quando sai para as ruas, fica vagando pelas ruínas da cidade onde flerta com outros rapazes que acabam indo para sua cama. E é nessas caminhadas que ele descobre a existência da seita.

Contudo, o filme de André Antônio está bem longe de ser uma ficção científica dentro do modelo estabelecido para o gênero. Ele, na verdade, brinca com essa expectativa e o futuro decadente representado no filme é composto por cenários reais do Recife contemporâneo. Uma paisagem que ganha outra dimensão quando o personagem do dândi com suas roupas excêntricas mergulha nelas. Em A Seita, André leva adiante algo que já esboçara no seu curta Canção de Outuno: a intenção de explorar a plasticidade da imagem em proveito de um refinamento estético de modo a sensibilizar o espectador mesmo que isto resulte em uma mise-en-scène anti-naturalista.

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O filme, portanto, apesar de sua proposta futurista, em sua essência não trai o espírito da figura do dândi escolhida para ser o fio condutor da narrativa. E nesse sentido sua perspectiva é marcada pela frivolidade, pela contemplação e pela indolência. Os planos longos, as repetições e os silêncios presentes em A Seita nos traduzem o permanente estado de languidez vivido pelo personagem, alguém que faz do seu comportamento uma arma contra o mundo contemporâneo – representado pela colônia espacial que ele deixou – com suas exigências de ordem, produtividade e felicidade a qualquer preço.

O figurino e o cenário anacrônicos, os diálogos repletos de viadagem e o claro louvor a um comportamento indolente, podem fazer A Seita parecer um filme frívolo, mas se prestarmos bem atenção veremos que a sua volta ao passado, num futuro que existe no presente é um ato bastante político. Tem dúvidas? A seita lhe dirá porquê.

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